A mudança de cenário fez com que os investimentos de capital de risco nas startups de saúde dessem um salto. A consultoria americana Startup Health estima que, nos primeiros seis meses de 2020, foram feitos 377 aportes em healthtechs no mundo todo, totalizando 9,1 bilhões de dólares. O número é 18% maior do que o valor investido no mesmo período do ano passado.
No Brasil, a situação é parecida. De acordo com os dados da brasileira Distrito, consultoria que faz a ponte entre grandes empresas e startups e promove eventos na área de inovação, os investimentos em healthtechs no país chegaram a 52 milhões de dólares até junho de 2020.
O valor é 37% superior aos investimentos realizados em todo o ano passado (38 milhões de reais). “O momento é positivo para as startups de saúde no Brasil. Por aqui, são criadas duas healthtechs por semana, e essa velocidade está aumentando, bem como os investimentos”, afirma Gustavo Araújo, cofundador da Distrito. Com a adoção de novas tecnologias, a expectativa é que o setor reconheça os benefícios da digitalização, que pode ajudar a vencer desafios como o tradicionalismo e a burocracia.
Quando começou a quarentena, o Conselho Federal de Medicina aprovou a realização de atendimentos médicos à distância. Em apenas nove dias, o Dr. Consulta colocou em funcionamento seu serviço de telemedicina. Entre os 1.400 médicos da startup, 300 atendem por canais digitais. Das mais de 50.000 teleconsultas realizadas desde março, as especialidades mais procuradas foram psiquiatria, clínica médica, dermatologia, ginecologia e urologia.
A maioria dos pacientes (54%) tem 45 anos ou mais. “Pretendemos manter a telemedicina, especialmente para retornos e recorrências. Quando há um problema crônico, por exemplo, a consulta pode ser feita via internet”, diz Renato Velloso, presidente do Dr. Consulta. No longo prazo, a empresa quer mudar a forma de encarar a saúde. “Nossa visão é que haverá um monitoramento constante da saúde. As pessoas irão ao médico para se manter saudáveis, e não só quando estiverem doentes”, afirma Thomaz Srougi, um dos fundadores do Dr. Consulta. Para isso, a empresa usa a análise de dados para manter a agenda dos médicos ocupada 85% do tempo.
O médico contrata o serviço e cria uma assinatura digital, e o paciente recebe a prescrição dos remédios por mensagem de texto. É uma visão um tanto quanto futurista para alguns, mas já é uma realidade presente em consultórios pelo Brasil. A Memed, healthtech focada em prescrições online, viu o número de cadastros de médicos em sua plataforma crescer de 18.000, em 2019, para uma média de 15.000 novos inscritos por mês.
O número de farmácias que aceitam a forma de prescrição digital também saiu de zero para 30.000 em apenas três meses. O crescimento fez a startup aumentar o quadro de funcionários de 20 para 50 pessoas.
A Memed é uma empresa familiar fundada em 2012 por Ricardo Moraes, seus dois irmãos, René e Rafael, e o primo, Marcel Ribeiro, em Avaré, no interior de São Paulo. “O intuito era digitalizar as prescrições médicas, e a gente entendia que existia uma oportunidade muito grande em um mercado pouco explorado”, diz Ricardo, presidente da empresa.
O momento, para ele, é importante para crescer. “A pandemia escancarou os problemas da saúde. Acho que esse é um legado que não tem como voltar atrás”, diz.
Nem todas as healthtechs tiveram uma curva crescente logo no começo da crise. Foi o caso da GnTech, criada em 2011. A ideia do psiquiatra e presidente, Guido May, era realizar exames farmacogenéticos para transtornos e doenças além dos psiquiátricos e do câncer.
Esse tipo de teste identifica os remédios mais indicados com base no DNA de cada indivíduo, o que reduz os efeitos colaterais. Com a pandemia, foi preciso acelerar os planos. Os testes, que antes eram analisados em laboratórios do Hospital Israelita Albert Einstein, tiveram de ser paralisados.
A solução foi adiantar a construção de um laboratório próprio prevista só para 2021. “A pandemia nos forçou a acelerar o cronograma”, diz Paula May, diretora executiva da empresa. Para atacar também o vírus, em junho a GnTech incluiu a covid-19 em seu rol de testes. Com a novidade, as vendas aumentaram 50% em um mês.
Fundada em 2011 e baseada em Florianópolis, a Neoprospecta é uma startup especializada em analisar o genoma de microrganismos que começou fazendo o sequenciamento de microbioma intestinal em pacientes para evitar infecções hospitalares. A especialização permitiu a expansão dos negócios em pouco tempo graças à captação de 16 milhões de reais em investimentos, incluindo um aporte do Hospital Israelita Albert Einstein.
Em 2019, os fundadores criaram também a startup BiomeHub para atender especificamente o segmento hospitalar, enquanto a Neoprospecta se concentrou na análise de microrganismos para empresas do ramo alimentício, como Marfrig, BRF e Vigor. Somadas, as duas empresas (Neoprospecta e BiomeHub) tiveram faturamento de 5 milhões de reais em 2019 e a projeção é chegar a 20 milhões de reais em 2020.
Diante da crise do novo coronavírus, a startup criou uma solução para acelerar os testes de infecção pelo vírus. Funciona assim: são coletadas duas amostras de cada pessoa. É feito um primeiro exame e, se detectada a presença do novo coronavírus, uma análise mais aprofundada é realizada na amostra que indicou a infecção pelo vírus, de modo a evitar falso diagnóstico positivo.
O teste acusa a presença do coronavírus mesmo em pacientes que ainda não desenvolveram anticorpos para combatê-lo, o que pode ajudar a reduzir a propagação do vírus. Segundo a empresa, os testes são feitos 16 vezes mais rapidamente do que os exames comuns de PCR e com custo de 50 reais por pessoa, um quinto do valor cobrado normalmente.
Até julho, mais de 100.000 pessoas já haviam feito os testes da Neoprospecta. “Usamos a genômica e a bioinformática para ajudar empresas e instituições de saúde a tomar decisões relacionadas a microrganismos. Com a covid-19, foi um pulo para adaptar nossa tecnologia para aproveitar essa janela de oportunidade com nossa experiência”, disse Luiz Fernando Oliveira, presidente e fundador da empresa.
A startup Carefy visa resolver um dos maiores problemas dos hospitais: a gestão de internação de pacientes. Com um software, a companhia permite visualizar os dados de cada pessoa para que a gestão de leitos seja mais eficiente.
Em menos de três anos, dados de mais de 200.000 internações de 170.000 pacientes foram gerenciados por hospitais que utilizam a solução, como o Grupo São Francisco, de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo — onde a startup está sediada.
Em 2020, a Carefy estima que vai triplicar o faturamento.
Quando a covid-19 chegou ao Brasil, a startup criou uma ferramenta para auxiliar na triagem. “Em duas semanas, criamos um mecanismo de busca em que o hospital pesquisa ‘febre e tosse’ e vê uma lista de pacientes. Assim, as pessoas com suspeita de covid-19 podem ser monitoradas de forma mais inteligente”, diz Erika Monteiro, uma das fundadoras da Carefy.
Para agilizar o diagnóstico de pacientes com covid-19, a tecnologia é uma poderosa aliada. A Maida Health, de Fortaleza, aliou-se ao Ministério da Saúde para utilizar inteligência artificial e analisar quadros suspeitos de covid-19.
A startup, que pertence à empresa de saúde suplementar Hapvida, identifica com algoritmos os sinais típicos da infecção pelo novo coronavírus em exames de raios X e tomografia computadorizada de tórax.
A solução de inteligência artificial é uma alternativa aos exames de sangue e de saliva e é oferecida gratuitamente a hospitais para auxiliar no diagnóstico e na triagem de pacientes. “O dado de saúde é um ativo de primeira grandeza, e esse é um dos aprendizados mais importantes da pandemia. Se tivéssemos mais dados qualificados e integrados, não em silos como estão hoje, teríamos lidado melhor com o coronavírus”, afirma Ney Paranaguá, presidente da Maida Health.
Desde o início da pandemia, a Hapvida oferece também um serviço de telemedicina. Em três meses, a companhia realizou mais de 40.000 atendimentos.
Como administrar, do ponto de vista de uma empresa, os planos de saúde dos funcionários? Foi essa a questão que a Gesto tentou responder ao ser fundada, em 2002, por um médico e uma engenheira. Em 2010, a empresa foi a primeira no Brasil a lançar uma tecnologia capaz de fazer a gestão de planos de saúde.
Para Fabiana Salles, presidente e fundadora, a empresa já estava bem preparada para lidar com a pandemia. “O custo do plano de saúde e a experiência do beneficiário são dores muito grandes para os empregadores. Com a pandemia, o problema ficou ainda mais gritante”, diz Salles. “Fazer boas escolhas, usar a inteligência e otimizar ao máximo o benefício virou mais do que uma necessidade”, diz.
A fundadora acredita que as healthtechs venham para sanar uma deficiência presente no setor de saúde. “Essas empresas trazem uma solução para problemas que nem as instituições privadas nem o SUS conseguem resolver. Elas otimizam todos os serviços de saúde. As healthtechs estão criando pontes em um sistema que é muito fragmentado e cheio de deficiências”, diz.
A Hi Technologies começou como muitas outras startups: quando dois universitários se uniram para inovar em determinado setor. Em 2004, o foco da empresa era um software para monitorar o quadro dos pacientes nos hospitais.
O segundo produto, um oxímetro de pulso utilizado para medir a oxigenação, foi lançado em seguida, no mesmo ano, e exportado para 15 países. Desde então a healthtech, que começou com um investimento de 2.500 reais dos fundadores, segue em expansão.
Em 2016, com o investimento da fabricante brasileira Positivo, os empresários fundaram o Hilab, que tem como principal produto os exames de sangue vendidos em farmácia. “Queríamos ser o menor laboratório em todos os lugares”, diz Marcus Vinícius Figueredo, presidente da startup. Em 2020, o Hilab adicionou um teste rápido para a covid-19 em seu catálogo. “Antes da pandemia, nós estávamos em 250 cidades do país. Agora estamos em mais de 800”, afirma.
O Hilab conta ainda com investimentos da americana Qualcomm e da gestora de capital de risco Monashees. “Houve a fase das fintechs, a fase das startups de transporte, e agora é o nosso momento”, afirma Figueredo.