Entrou em vigor a Lei nº 12.846, de agosto do ano passado - a decantada Lei Anticorrupção -que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Por esta nova lei, pretende-se responsabilizar as pessoas jurídicas pelo dano social que representa a prática de ilícitos que têm por foco a lisura no trato com a administração pública. Em outras palavras, como se diz atualmente, trata-se de uma lei que busca punir os "malfeitos" praticados contra a administração, daqui e de alhures, especialmente no que se refere a contratos e licitações.
Ao que se vê, a motivação política está bem clara e, mais do que louvável, a iniciativa legislativa nesse sentido era impositiva; mas, lamentavelmente, a Lei nº 12.846 padece de vícios que provocarão mais demandas judiciais contra a sua aplicação do que, propriamente, a punição dos "grandes tubarões", que é o seu legítimo objetivo.
O legislador parece ter se esquecido de que leis como essas têm a natureza de normas penais. Elas integram o campo do direito administrativo sancionador e, como tal, são espécie do gênero normas penais, que devem se submeter, portanto, a todos os princípios gerais norteadores desse ramo do direito, dentre os quais, apenas para enunciar os mais expressivos, destacam-se os de que (i) não pode haver condenação sem apuração de culpa e (ii) a pena não pode atingir terceiros além do autor do ilícito.
A lei padece de vícios que provocarão mais demandas judiciais contra a sua aplicação do que a punição dos 'grandes tubarões'
Pois bem, a nova lei, logo em seu art. 2º, § 1º, sem qualquer pudor técnico, estabelece que "as pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não". Pouco mais adiante, no art. 3º, reafirma o propósito (ou despropósito) da responsabilização administrativa (penal) objetiva das pessoas jurídicas, ao dispor que essa responsabilização independe da responsabilização individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito, mas ressalva que essas pessoas (físicas) somente serão responsabilizadas por atos ilícitos na medida de sua culpabilidade...
A responsabilidade social que justificaria a punição das pessoas jurídicas (dos entes coletivos, como dizem alguns) é suficiente para autorizar essa responsabilização, mas isso não é suficiente para sustentar uma condenação objetiva, que não tenha por base a apuração da culpa ou - se insistirmos na objetividade - a transgressão de um risco proibido que a lei teria de enunciar.
Não se pode fugir da aferição da culpabilidade em matéria penal, mesmo que, no caso das pessoas jurídicas, essa culpabilidade deva ser apurada no plano dos órgãos sociais que exteriorizam a sua vontade: a diretoria, o conselho de administração e a assembleia geral. Tal culpabilidade, portanto, não pode abstrair o fato de que apenas as pessoas naturais são capazes de agir, de praticar ação, e que o sofisma de o representante da pessoa jurídica ser a "personificação material" do seu agir não resolve o problema em matéria de direito sancionador (de natureza penal): como ficam, por exemplo, os acionistas dissidentes da deliberação tida por ilícita, e punível, ou ainda os minoritários que sequer tenham conhecimento do atos tipificados na forma da lei, no caso extremo de ser decretada a dissolução compulsória da pessoa jurídica?
É preciso que se tenha em conta que nem o direito francês - modelo para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas inscrita em nossa Constituição Federal, no art. 225, § 3º (danos ao meio ambiente) - dissociou o elemento "ação humana" das pesonnes morales, na medida em que o art. 121-2 do Código Penal francês estabelece que as pessoas morais respondem penalmente, mas pelas infrações cometidas por seus órgãos ou representantes.
Ou seja, a ruptura desse binômio, por assim dizer, composto pela ação humana como elemento essencial para a responsabilização da pessoa jurídica, implica em afronta ao nosso sistema jurídico, por inconstitucionalidade, o que fulmina de morte a aplicabilidade do novo diploma.
Mesmo que se pretenda defender a nova lei sob o fundamento de que a sociedade pós-industrial impõe a responsabilização objetiva pela prática de delitos, na esteira do que vem sendo feito em outros países, convém lembrar que a teoria da imputação objetiva pressupõe, necessariamente - como enunciado, em primeiro lugar, pelo jurista alemão Claus Roxin - a previsão legal dos riscos proibidos que, uma vez assumidos na gestão da pessoa jurídica, tipificariam a ação ilícita passível de punição. Claro que esse cuidado passou bem ao largo dos dispositivos contidos na Lei Anticorrupção.
Tal como está, a nova lei, por sua amplitude e imprecisão técnica, se presta a uso impróprio e, o que é pior, bem ao sabor de aplicações políticas as mais diversas. Suas imperfeições, como a falta de clareza quanto à indicação de quem deva aplica-la, ao alcance dos tipos e à dosimetria das penas, por exemplo, tem por único e paradoxal efeito gerar ainda maior insegurança jurídica no plano do direito penal econômico, aí considerada sua forma mais branda, por assim dizer, do direito administrativo sancionador.
Não se pode negar, contudo, que a matéria demanda muita discussão e a demonstração de razões incompatíveis com os limites deste texto, mas é certo que também não se pode, ao argumento de buscar um bem maior, dilapidar nosso sistema jurídico, negando princípios e garantias constitucionais inalienáveis.
Afinal de contas, todos nós sabemos muito bem onde pode chegar a defesa do mote "os fins justificam os meios"... Do legislador e do Judiciário deve-se exigir, sempre, o comedimento e o respeito ao direito.
Ary Azevedo Franco Neto é sócio do escritório Rosman, Penalva, Souza Leão, Franco e Advogados
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