A Lei nº 12.846, de 2013, é o assunto do momento. Eventos, mesas redondas e demandas por estruturação de compliances compõem uma série de ações destinadas a preparar as pessoas jurídicas para um mundo aparentemente novo, com severas punições a quem atentar contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na temática da anticorrupção. As principais novidades da lei são as tais responsabilizações objetivas administrativa e judicial, não concentradas na reparação de eventuais prejuízos ao erário público, mas sim na imposição de punições aos corruptores. Vale aqui uma reflexão: qual o fundamento constitucional dessas responsabilizações?
De forma simplificada e singela é, de fato, possível encontrar três tipos de responsabilidade na ordem jurídica brasileira: (i) responsabilidade civil, essencialmente orientada para reparação de danos, sendo estes o limite da indenização; (ii) responsabilidade criminal, com viés punitivo mais focado na pessoa ou no patrimônio do infrator do que na esfera jurídica do ofendido; e (iii) responsabilidade administrativa, em geral associada a determinados status jurídicos bem definidos como servidores públicos e prestadores de serviços públicos. As duas primeiras são mais consolidadas e defluem de diplomas normativos tradicionais, o Código Civil e o Código Penal. A última está em construção e tem previsão esparsa na legislação, com mais presença nas normas das agências reguladoras. Todas partem, todavia, de um ponto comum: a responsabilidade subjetiva com regra.
Por mais que o direito tenha migrado para a objetivação das condutas, a figura da culpa preserva sua relevância. Tanto é assim que a responsabilidade objetiva somente se aplica quando há determinação legal expressa. Ou seja, no silêncio da lei e dolo à parte, um sujeito somente pode ser responsabilizado se agir com negligência, imprudência ou imperícia devidamente comprovadas. E importa dizer que mesmo a responsabilidade objetiva não exclui totalmente o debate sobre a culpa. Apenas dispensa o ofendido de prová-la, sem impedir que o ofensor demonstre sua não culpa e, por isso, mitigue ou livre-se de responsabilização em hipóteses como culpa da vítima.
A lei parece ter extrapolado a matriz constitucional ao fixar punições como multa e suspensão de atividades
Quando a análise envolve pessoa jurídica é preciso acrescentar ainda outro tempero: o capítulo dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, inaugurado no artigo 170 da Constituição Federal. Em diversas normas desse capítulo pode-se buscar fundamento para produção de leis de responsabilização dos indivíduos. Porém, o artigo 173, parágrafo 5º, traça os limites para a atuação do legislador em relação à pessoa jurídica ao dizer que a lei estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Ocorre que essas situações já estão regulamentadas. Como exemplo, veja-se a Lei nº 4.595 (Lei do Sistema Financeiro), de 1964, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei nº 12.529 (Lei da Concorrência), de 2011. A ora famosa Lei Anticorrupção não trata desses temas. Refere-se apenas a atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.
Desse modo, fica a questão: se a base dos sistemas de responsabilidade no Brasil é subjetiva e a responsabilização das pessoas jurídicas encontra limitações claras no texto da Constituição Federal, como pode a Lei nº 12.846, de 2013, estipular-lhes sanções fundadas em responsabilidade objetiva? A lei poderia sim ter reforçado o dever de indenizar todos os prejuízos provocados por atos de corrupção, apesar de o Código Civil já dar conta do assunto. Mas ao fixar punições como multa, suspensão de atividades e até dissolução compulsória parece ter extrapolado a matriz constitucional. Soma-se a isso a dúvida sobre a mensuração das penas. Ao contrário da responsabilidade penal, em que o julgador primeiro define uma punição (reclusão, por exemplo) e depois dosa seu rigor (seis a 20 anos, por exemplo), na Lei Anticorrupção a própria definição do tipo de pena estará sujeita à discricionariedade da autoridade pública, o que pode, paradoxalmente, gerar mais corrupção.
As ruas mostram que a aplicação de sanções a corruptores é um desejo nacional. A Lei nº 12.846, de 2013, está tendo o efeito positivo de chamar atenção de muitos daqueles que, descaradamente, alimentam o câncer da corrupção. Acontece que temos o mau hábito de achar que uma lei é solução para todos os problemas. Depositar tantas esperanças em um texto legal e fazer tanto barulho a seu respeito pode resultar em frustração, em especial porque essa doença das instituições está em visível metástase. Diante de recentes decisões do nosso Poder Judiciário, não é impossível que essa seja mais uma norma a figurar nos anais da República como um pouco mais de pão e circo.
Kleber Luiz Zanchim é doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e sócio de SABZ Advogados.
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