O conteúdo deste "Conta de Juros Grande & Favela" é o resultado de 20 anos de colaboração acadêmica e intelectual entre Matías Vernengo e Alcino Ferreira Camara Neto, seu professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em boa parte, os capítulos correspondem a versões modificadas de artigos publicados em outros livros e revistas especializadas, em sua maioria, de lingua inglesa.
O livro "também é fruto de uma frustração", dizem os autores: " A crise do estado de bem-estar keynesiano, que na periferia se disfarçou de crise da dívida, e a chamada "revolta das elites", na expressão feliz de Christopher Lasch [historiador americano, autor de "The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy"], no Brasil levaram ao surgimento de uma elite financeira que tem, por mais de 30 anos, impedido a retomada do desenvolvimento, com consequências sociais nefastas".
O propósito embutido no título, alusão a "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, limita-se "ao paralelismo na desmistificação de certas verdades aceitas pela sabedoria convencional". Se Freyre, "armado com os desenvolvimentos da antropologia de sua época, reagia contra as interpretações eugenistas, com ranço racista, sobre nossa cultura, acreditamos que é necessário romper com as interpretações ortodoxas de nossa estagnação econômica, e da manutenção da desigualdade".
Argentino de nascimento e brasileiro por adoção, hoje professor de economia na Bucknell University, nos Estados Unidos, Vernengo pratica em tempo integral o que diz o título de seu blog, que publica em inglês: "Naked Keynesianism". "Keynesianismo selvagem" pode ser uma tradução. A expressão foi usada por um jornalista da "Fox News" para classificar o que James Kenneth Galbraith ensinava (e ensina) a seus alunos na Universidade do Texas, "uma forma de corrupção da juventude", explicou Vernengo em entrevista ao Valor. Para ainda melhor exprimir o espírito do blog, lê-se, abaixo do título, que se trata de "cicuta para estudantes de economia ("hemlock for economic students"). A ideia, sarcástica, de "envenenamento" vem de quando Vernengo lecionava em Utah, "uma universidade pública no Estado mais conservador dos Estados Unidos" — mesma época de criação do blog. "Na visão da direita reacionária dos Estados Unidos, eu também estava corrompendo os alunos. A cicuta é uma brincadeira com Sócrates, que teve de tomá-la, por corromper a juventude de Atenas."
O keynesianismo "selvagem" de Vernengo – que se doutorou na New School of Social Research, em Nova York -- justifica a proposta, feita no livro, de substituição do superávit fiscal primário, essa "verdadeira obsessão, que reduz o potencial de crescimento brasileiro", por um déficit primário. "O que sugiro mesmo é uma política fiscal mais expansionista. O resultado poderia até ser um superávit primário, pois uma taxa de crescimento maior elevaria o nível da arrecadação. O problema é que uma meta de superávit primário que determina o gasto não financeiro, com uma taxa de juros elevada, que determina o gasto financeiro, limita a capacidade de gasto do Estado para o que é necessário para o desenvolvimento. Não só transferências, como o Bolsa Família, com as quais concordo, mas gastos em infraestrutura, em pesquisa e desenvolvimento, por exemplo."
Para Vernengo, a situação atual da economia brasileira não exige nem ajuste fiscal (mais austeridade), nem taxas de juros tão elevadas. "A inflação não é alta, a despeito do que a mídia e os economistas do ‘establishment’ sugerem. Rigorosamente, não há evidência alguma de que uma inflação de, digamos, 6% ou 7% tenha um efeito pior do que uma de 4% ou 4,5%. Não sugiro que qualquer inflação seja aceitável. Mas a atual inflação no Brasil não é um problema, em particular, porque os salários têm sido reajustados e a distribuição de renda não piorou. Pelo contrário. De resto, a situação externa, no médio prazo, não é preocupante. Temos reservas e as taxas negativas no mundo desenvolvido, que vão continuar, mesmo com a nova política do Fed, implicam capacidade de atrair capital."
Seria preciso considerar ainda, argumenta Vernengo, que "a economia simplesmente não cresceu". A taxa de crescimento dos governos Lula-Dilma "foi, na média, de 3,5%, não muito diferente do período FHC (2,3%) e muito abaixo do nível histórico de 7,5% dos anos dourados". Quanto à taxa de desemprego oficial, baixa, camuflaria um desemprego oculto, "o trabalho de baixa produtividade, dos biscateiros, que é altíssimo". Portanto, "é ridículo dizer que temos pleno emprego, como alguns desavisados repetem".
Vernengo não tem dúvidas: "A razão pela qual a noção de que os indicadores demandam uma política contrativa não é técnica, mas política. Basicamente, quem ganha com juros altos, e ajuste fiscal permanente, são os rentistas. Logo, precisamos de mais estimulo fiscal, e taxas de juros mais baixas."
Leia estes outros trechos da entrevista de Vernengo ao Valor.
Valor: O senhor diz que "a explicação dos juros altos é simples: o Brasil abriu a conta de capital e passou a usar o câmbio para controlar a inflação, com o que a taxa de juros passa a ter que estar elevada o tempo todo". Quais seriam os controles recomendáveis, na prática? Considere que há controvérsias quanto à eficácia do controle de capitais. Alguns autores, mesmo entre keynesianos, concluem que o balanço fundamental de custos e benefícios da remoção de controles continua pendendo para o lado da liberalização. Discute-se a própria conceituação adequada de controles de capital.
Matías Vernengo: Os controles que o Brasil impôs são basicamente para obter fundos. Não são capazes de parar significativamente os fluxos de capital. A evidência sobre controles de capital após a abertura global e o fim de Bretton Woods, em casos como o Chile nos anos 1990, ou a Malásia depois da Crise Asiática, é que conseguem reduzir os fluxos de curto prazo (Chile), e numa situação de crise são necessários para uma recuperação mais rápida após uma crise (Malásia). É verdade que controlar fluxos de capital unilateralmente é mais complicado quando os mercados internacionais são liberalizados, mas a ideia de que são irrelevantes é também um erro. A redução dos juros que começou em setembro 2011, depois do inicio do governo Dilma, ia na direção certa. A queda dos juros não provocou uma fuga de capital, e existe pouco perigo de que isso aconteça, porque a recuperação nos Estados Unidos vai continuar lenta, e a Europa, nem se fala. E temos uma quantidade enorme de reservas internacionais. Logo, nem sequer há muita necessidade de controles de capital neste momento. Basta uma decisão política de manter taxas de crescimento mais elevadas, e de estimular a economia. Um governo desenvolvimentista de verdade seria necessário, em outras palavras. Falta um JK, e outro plano de metas. A esquerda de hoje parece incapaz de pensar grande.
Valor: A crise nascida em 2007/2008, seus desdobramentos e tentativas de estabilização aplicadas, inclusive no Brasil, teriam trazido indicações de que políticas de fundo keynesiano ganharam mais espaço de viabilidade, digamos, demonstrada? Ou, ao contrário, a interrupção do uso de políticas de fundo keynesiano, trocadas pelo discurso de austeridade, estaria mostrando que a chamada sabedoria convencional mantém seu poder de arbitragem intacto? — sendo essa austeridade representada, no Brasil, de certa forma, pela insistência na busca de superávits primários.
Vernengo: Em alguma medida, o que o PSDB e também, com alguma diferença de grau, o PT representam é o que a virada da esquerda na Europa Ocidental (por exemplo, com Mitterrand, Felipe González, Blair) e dos democratas (Carter, Clinton) nos Estados Unidos representou, aceitando argumentos essencialmente anti-keynesianos. No PT, ainda há um grupo mais ligado às ideias keynesianas, mas parece, com a saída de Nelson Barbosa do governo, que a ideia de priorizar o crescimento perdeu para a noção de que a inflação é o maior perigo e há que apertar o cinto. No Brasil, como, de resto, nos Estados Unidos, o momento keynesiano foi muito breve. Nos Estados Unidos, o pacote fiscal de Barack Obama foi pequeno e depois o governo, com a pressão dos republicanos, cedeu a políticas de austeridade. O Brasil também acelerou na saída da crise, com o PAC e outras medidas, mas, logo depois da eleição, Dilma aceitou o diagnóstico de que tínhamos exagerado e o perigo era a aceleração da inflação. Governo de esquerda anti-keynesiano não é de esquerda. Não dá. Veja o Hollande na França. A esquerda é definida pelo gasto que promove crescimento — e, em nosso caso, não a quimera do pleno emprego, mas a incorporação da massa de trabalhadores com empregos de baixa produtividade — e redistribuição de renda. Os programas sociais são importantes, mas não são suficientes.
Valor: O senhor diz que "a predominância do pensamento neoclássico, que dá ênfase ao comportamento racional maximizador dos indivíduos, levou para um nível de importância secundária as interações entre agentes (e classes), fez com que a ideia do poder perdesse quase toda sua relevância e a economia política passou a ser simplesmente política". De quais "interações" se trata? E de qual "política"?
Vernengo: Sem querer ir muito para a história do pensamento econômico, essa transição da economia política dos velhos autores clássicos (Smith, Ricardo e Marx) para os autores neoclássicos modernos é velha, do fim do século XIX. O essencial era desbancar a ideia de que o salário real e, portanto, a distribuição de renda, é determinada pelo conflito entre trabalho e capital. Na teoria neoclássica, cada um recebe de acordo com sua produtividade. O salário é baixo porque a produtividade é baixa. O conflito, o peso dos sindicatos, a história da formação da classe trabalhadora — que, em nosso caso, carrega os séculos de escravidão e de exploração desenfreada — não contam.
Valor: O que acontece na prática da formulação e execução de políticas?
Vernengo: O perigo é cair numa discussão sobre se não ajustar o salário mínimo é uma questão técnica, quem sabe ligada aos gastos da Previdência. Ou sobre se desvalorizar, e ter um salário real mais baixo em dólares, vai permitir uma maior competitividade para crescer exportando. A questão técnica pode ir na direção oposta da teoria neoclássica, com salários mais altos estimulando a demanda e o crescimento (facilitando a arrecadação e a sustentabilidade das contas públicas, incluída ai a Previdência) ou o fato de que as exportações não respondem muito à desvalorização, e que não dá para competir com a China em termos de salários reais baixos em dólares. Para além disso, está o fato de que há uma decisão política, de que sociedade queremos. Não vai ser a Suécia dos sonhos da social-democracia paulista, mas temos condições de criar uma sociedade mais justa, com crescimento puxado pela demanda e pelo crescimento do salário real.
Valor: O senhor diz que "a noção de que a distribuição de renda (no Brasil) melhorou está fora de lugar. É uma ideia absolutamente equivocada e, portanto, políticas sociais, embora existam, não explicam muito". E faz comparações com a Argentina e a Venezuela, dizendo que, nesses países, programas de transferência de renda foram complementados por "políticas macroeconômicas que vão na direção certa", O estado atual das economias argentina e venezuelana, de evidente instabilidade, teriam recomendado uma revisão de suas avaliações?
Vernengo: Quando você olha os números da distribuição funcional de renda, estamos agora mais ou menos no mesmo nível do inicio dos anos 1990, que não foi historicamente um dos melhores momentos. Os dados no Brasil são fragmentários, mas parece claro que a melhoria que houve, que começou no segundo mandato de Lula, associada a uma aceleração do crescimento do salário mínimo e à expansão dos programas sociais, ainda nos deixa em pior situação do que nos tempos da chamada Era Vargas. O salário mínimo atingiu seu máximo histórico nos anos 1950 e início dos 60. E isso seu deu em um contexto em que de fato as estruturas econômicas e sociais do Brasil estavam sendo transformadas, quando um retirante nordestino podia vir para São Paulo e virar um torneiro mecânico, e quando o peso das exportações de produtos tradicionais, como o café, era cada vez menos importante. Enfim, uma época em que surgiu uma classe média com novas aspirações sociais, que passou a ter acesso à educação universitária pública e gratuita, à casa própria com financiamento subsidiado, a desenvolvimentos culturais próprios. Essa nova classe média e a melhoria da distribuição de renda dos últimos anos não são comparáveis.
Valor: E quanto à Argentina e à Venezuela?
Vernengo: Sobre a Argentina, vale notar que as coisas mudaram muito nos últimos três anos. Houve muito maior expansão fiscal até pelo menos 2010, o que explica por que lá cresceram, usando os números do Ferreres [Orlando J. Ferreres, fundador de respeitada consultoria argentina], que são aceitos por todos, uns 5,5%. E se olharmos de 2003 a 2011, quando as tensões começam a surgir, a taxa de crescimento foi de 6,4% por ano, bem maior do que os 3,5% do Brasil, mesmo com um choque positivo dos termos de intercâmbio menor. Mas a política de desvalorizações nominais e os aumentos mais pronunciados levaram a uma inflação mais elevada, de pelo menos uns 25%, com o que os salários reais começaram a sofrer. No caso argentino, a restrição externa reapareceu por razões financeiras. Com taxas de juros negativas e com a desvalorização do peso, houve uma crescente corrida para o dólar, reduzindo o volume de reservas e pondo em perigo a situação externa.
A Venezuela teve um choque positivo mais forte, mas lá também houve excesso de austeridade na saída da crise global, e em ambos os casos houve uma guinada similar numa direção menos expansionista. Pior eu diria é que o socialismo bolivariano na verdade se limitou a redistribuir um pouco mais as rendas associadas com as exportações de commodities, levando a uma melhoria da distribuição de renda, mas no campo industrial houve pouco desenvolvimento. Na verdade, a região está fazendo uma integração periférica com a periferia asiática, com a China, exportando commodities para lá em troca de bens manufaturados. Mas não há dúvida de que, no balanço da última década, o desempenho na Argentina, em particular, foi melhor do que aqui.
Valor: O Brasil está entre os países considerados mais vulneráveis aos efeitos da prevista redução gradual da liquidez global, a partir da esperada mudança de rumo da política monetária americana, segundo avaliações das agências de classificação de riscos. Mas há quem relativize essa vulnerabilidade, considerando despropositado situar o Brasil ao lado de países cujas economias se encontram em condições completamente diversas. Qual é sua avaliação de perspectivas para a economia brasileira?
Vernengo: Com todo respeito, isso é besteira. Não só porque o Brasil não é o país mais vulnerável, e de fato, neste momento a Argentina é muito mais, mas também porque é "naïve" pensar que a politica monetária do Fed [o banco central americano] vai mudar muito. Por esse lado, não há problema. Além disso, o Brasil está sentado numa montanha de reservas. No longo prazo há um problema. O Brasil exporta commodities para o mundo, e produtos industrializados basicamente para os países da região. Há um perigo de reprimarização das exportações e na competição industrial da China. Nesse sentido, a conta-corrente negativa, embora não implique crise eminente, revela as fraquezas da atual estratégia de desenvolvimento, se é que podemos falar de uma estratégia no Brasil de hoje.
Valor: O senhor ocupou funções relevantes no Banco Central da Argentina, como gerente da área de pesquisas. Como convivia com a qualidade dos indicadores econômicos do país apresentados nos últimos anos, postos sob suspeição generalizada há tempos e que recentemente se confirmou, com a adoção de nova metodologia para cálculo da inflação?
Vernengo: Todos sabem que os indicadores de inflação são muito baixos e que estão errados. Isso nunca afetou as decisões de política econômica. Gerou, sim, um problema político. A saída de [Guillermo] Moreno, o ex-secretário de Comércio, e o novo índice, além da posição dominante de [Alex] Kicillof no comando da equipe econômica, sugerem que isso vai ficar para trás. De fato, o governo está agora fazendo o que críticos como Roberto Frenkel [economista argentino] pediam: desvalorização do câmbio, para aumentar a competitividade e exportar mais, e ajuste fiscal e monetário para conter a inflação. Eu acho isso um erro grave. A desvalorização não vai ajudar a crescer, e é inflacionária. Além disso, pode detonar uma crise externa, embora a conta-corrente esteja quase equilibrada.
Alcino Ferreira Camara Neto e Matías Vernengo. Editora: BRVCom Cultural. 194 págs. R$ 55,00
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