Desde o fim de fevereiro, quando o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado no Brasil, temos ouvido repetidamente de representantes do setor da saúde e autoridades sócio-políticas que é necessário agir rapidamente para “achatar a curva” de contágio do vírus. Só assim, segundo especialistas, poderíamos começar a amenizar os efeitos avassaladores do Covid-19 no sistema de saúde brasileiro. Neste contexto, a telemedicina se faz pauta indispensável, tanto como solução de logística para assistência médica à distância, como, também uma possibilidade de proteção aos profissionais da saúde em faixa de risco e seus familiares, durante a pandemia que vivemos.
Apesar de ainda seguir o regulamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) de 2002 (1.643), muito ainda se discute sobre essa metodologia: formas de aplicação, remuneração dos médicos, ética e outras questões, como proteção de dados dos pacientes, ainda fazem parte dos debates. No ano passado, o CFM chegou a divulgar uma resolução (CFM 2.227/18) que significaria um avanço considerável na regulamentação da telemedicina no País, mas logo revogou as medidas, segundo o órgão, devido a protestos e o grande número de propostas de alteração por parte de entidades e médicos. Não fosse isso, teríamos continuado a evoluir e hoje, certamente, uma parcela significativa dos médicos e hospitais já estariam muito melhor preparado, com toda a sistemática de serviços razoavelmente estruturada. Seríamos mais ágeis e não precisaríamos somente agora pensar em treinamentos e criação de sistemas.
Entretanto, nunca é tarde demais. A telemedicina ainda pode – e deve! – ser uma aliada valiosa do nosso sistema de saúde no enfrentamento do Covid-19. Esta doença, apesar de não ter a letalidade SARS-Cov e a MERS-Cov, tampouco ser tão contagiosa quanto o sarampo, é muito rápida em se espalhar e é desconhecida pela medicina e pelo sistema imunológico humano. Quando atinge a população de risco, o tempo para a cura é longo, o que provoca a superlotação de hospitais e a falta de equipamentos médicos, sobretudo para os casos mais graves que necessitam de UTI e respiradores artificiais. Neste cenário, a telemedicina bem-feita pode ser útil em muitos sentidos, como na detecção da doença, prevenção, contingência e acompanhamento remoto dos doentes (quarentena). Para que isso seja possível, é preciso agir rápido e nos estruturar.
Precisamos oferecer cursos imediatos e contínuos, seja para médicos que atuam frente ao coronavírus ou para os médicos que acompanham todos os pacientes com doenças crônicas. Não podemos nos esquecer que outras doenças coexistem com a Covid-19 e elas ainda precisam ser cuidadas. As instituições sérias precisam desenvolver plataformas confiáveis e formatá-las para que seus médicos estejam interligados. A aceleração de canais de denúncia de uso mercantilista, abusivo e irresponsável de telemedicina deve ser uma prioridade, para que os antiéticos sejam denunciados e a atitude mercantilista seja inibida, especialmente neste momento. E, com urgência, devemos discutir e caracterizar os critérios que determinam o ato médico de uma teleconsulta ou serviços de telemedicina responsável para que se possa definir a remuneração médica pelo exercício responsável do método na profissão.
Como norte e à princípio, é importante que algumas questões sejam consideradas na hora de definir os critérios de remuneração na telemedicina: a característica e sistemática do atendimento, o número de pacientes que podem ser atendidos por hora, como será o momento de descanso (para evitar questões relacionados com cansaço emocional que podem provocar Síndrome de Bournout) e nível de responsabilidade. A discussão e a definição de um modelo trabalhista são fundamentais para garantir a qualidade dos serviços prestados.
Para o enfrentamento da Pandemia por Covid-19, é preciso pensar na logística para estruturar esses serviços – e visualizar a telemedicina em níveis funcionais e interligados entre si por uma “Nuvem de Saúde” e organizados em Rede. A teletriagem referenciada deve ser o primeiro ponto a ser considerado pelas instituições e pelo Ministério da Saúde. A criação de plataformas digitais seguras que possibilite que pessoas com sintomas de síndrome gripal tenham acesso ao atendimento médico remotamente, sem que tenham que sair de casa e sem qualquer contato físico com o médico, já permite a primeira tomada de decisão clínica: isolamento para evitar contágio de terceiros ou encaminhamento para um serviço hospitalar presencial. Outra camada é o acompanhamento contínuo de pacientes em quarentena, não apenas para avaliação clínica, mas também para redução de intercontaminação. Isso se dá por meio da avaliação periódico do quadro geral e avaliação dos hábitos que representem riscos para outras pessoas.
Outra camada importante é a telemedicina como suporte para aumentar e eficiência no manejo clínico de pacientes de média e alta complexidade, a partir da teleinterconsulta especializada ou mesmo de TeleJunta Médica. Este segmento ganhará importância na gestão de UTI (Tele-UTI).
Além do atendimento à distância poder oferecer também maior número de profissionais disponíveis em formato de 24 horas por dia, 7 dias da semana – o teleatendimento possibilita que médicos com mais de 60 anos (ou seja, que fazem parte do grupo de risco, com boa experiencia clínica prática e que ainda estão em plena atividade), possam atuar no plantão local por meio dos telemabulatórios e, ao mesmo tempo, evitar ser contaminado.
Embora seja até um ritual positivo, apenas aplaudir os nossos profissionais da saúde pelo excelente trabalho que tem sido feito até aqui não é suficiente, e pode até ser visto como demagogia. Os gestores e tomadores de decisão do sistema de saúde deveriam organizar serviços ágeis de teleatendimento para cuidar do corpo clínico e equipe da saúde (hospitais, UBS, UPA, PS etc.). E a telemedicina está posta. Basta usar, com responsabilidade. Na Espanha, dados mostram que 12% dos trabalhadores que estão na linha de frente acabaram contaminados. Imaginem só a ansiedade e o medo de levar o vírus para dentro de casa! E o que fazer com 12% dos profissionais fora de combate? Por que não pensar em criar unidades de telemedicina também para atendimento eficiente aos técnicos, médicos e enfermeiros, equipe dos hospitais (administrativos, limpeza, cozinha etc.) e suas famílias como algo prioritário? Isto também é investir na força de trabalho para termos muito mais pessoas ativas e menos ansiosas, além de ser também uma forma de cuidar melhor dos nossos pacientes.
Sobre o autor
Chao Lung Wen é médico, professor associado da Faculdade de Medicina da USP e chefe da disciplina de Telemedicina; líder do Grupo de Pesquisa USP em Telemedicina e eHealth no CNPq/MCTIC; orientador em nível de mestrado e doutorado pela Faculdade de Medicina da USP.