Robô na operação
21/02/2014 - por Por João Luiz Rosa | De São Paulo

Na sala ampla e iluminada, médicos, enfermeiros e assistentes acompanham com atenção o que se passa em um monitor de LCD. A cena que se vê na tela lembra aqueles programas de medicina, muito comuns em canais educativos, nos quais microcâmeras percorrem o organismo humano até chegar à fonte de algum problema misterioso. Mas esse não é um programa de TV. A ação, ao vivo, desenrola-se ali mesmo. Do paciente, no fundo da sala, não se vê quase nada. Um tecido verde cobre a mesa de cirurgia e praticamente só deixa à mostra os enormes braços mecânicos que se projetam sobre o doente. O cirurgião, a um metro e meio de distância, está sentado a uma espécie de rack, com a cabeça inclinada na direção de um binóculo e as mãos atadas a um par de "joysticks", com os quais controla os braços mecânicos.

"Quer ver?", pergunta.

Ao aproximar os olhos do binóculo, o que se vê é a mesma cena mostrada pelo LCD, mas com uma diferença fundamental - exibida em 3D, a imagem torna tão reais as pinças que se movimentam no corpo do paciente que parecem estar bem à frente, como se fossem prolongamentos dos seus braços. A sensação é a de um misto de TV 3D, sem a necessidade de usar aqueles óculos especiais, com um jogo de videogame em alta definição. Bem-vindo ao novo mundo das cirurgias robóticas.

Desde 2008, quando adquiriu seu primeiro robô, essa cena - no caso, uma cirurgia de câncer na próstata - tem se repetido com frequência cada vez maior no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. A instituição, que hoje conta com dois sistemas robotizados, é uma das poucas a fazer esse tipo de procedimento no país, onde o número de robôs cirúrgicos vem crescendo, mas ainda é restrito. Até o fim do ano passado, havia 12 sistemas no Brasil, um terço dos 36 robôs vendidos na América Latina, de acordo com a Intuitive Surgical, empresa americana que concebe e fabrica os robôs Da Vinci. Nos Estados Unidos, o número chega a cerca de 1,8 mil equipamentos.

Além do Sírio-Libanês, a lista de instituições com robôs cirúrgicos inclui hospitais como Albert Einstein (com dois robôs), Oswaldo Cruz, A.C. Camargo e 9 de Julho (todos de São Paulo); Instituto Nacional do Câncer (Inca) e Hospital Samaritano (no Rio); e Hospital das Clínicas de Porto Alegre. O Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) tornou-se o mais recente membro do clube nesta semana.

Depois das cirurgias abertas, que exigem grandes cortes, e das laparoscópicas - um tipo de operação minimamente invasiva -, os robôs são considerados a terceira geração cirúrgica. Eles não podem ser aplicados a qualquer caso, mas fazem uma grande diferença em áreas como urologia, ginecologia, gastrocirurgia, operações de tórax, cabeça e pescoço, afirmam especialistas.

A principal mudança é a precisão conferida ao médico. "Enquanto na laparoscopia você conta com 4 graus de movimento, com o robô passa a ter 7 graus", compara o médico Carlo Passerotti, coordenador de cirurgia robótica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Na prática, isso significa que o cirurgião passa a fazer movimentos que antes eram simplesmente impossíveis. O sistema também estende os limites do olhar. "Com o 3D, é possível ampliar a imagem de 10 a 15 vezes", diz o médico.

O alto investimento restringe o uso de robôs aos grandes hospitais e sempre haverá uma conta adicional a ser paga pelo paciente

Para o paciente, as vantagens da cirurgia robótica vão desde um período de internação mais curto - o que significa um risco menor de infecção hospitalar - até melhorias em relação à perda de sangue, redução da dose de medicamentos no pós-operatório e retorno mais rápido para a vida normal. "Em casos de ressecção (retirada) de tumor da faringe, por exemplo, o tempo médio da cirurgia diminui de dez horas para uma hora e meia, o de internação cai de dez dias para um ou dois dias e o paciente volta a falar normalmente entre nove e dez dias, quando o prazo habitual é de um mês", informa o dr. Sérgio Arap, gerente do centro cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês.

No Inca, no Rio, foram feitas 265 cirurgias robóticas desde que o sistema entrou em funcionamento, em março de 2012. "Não foi necessário fazer transfusão de sangue em nenhuma delas e não tivemos um só caso de infecção hospitalar", afirma o dr. Luiz Antonio Santini, seu diretor-geral. No caso das intervenções de cabeça e pescoço, o tempo de internação no Inca - que costumava demorar de sete a dez dias - ficou resumido a dois dias.

Embora sejam pouco conhecidos pelas pessoas e tenham muito a evoluir, os robôs cirúrgicos não são recentes. Como vários sistemas que se provaram inovadores ao longo do tempo, a aplicação tem origem militar. No fim dos anos 1980, o Darpa, uma agência americana encarregada de desenvolver tecnologias militares, deu início a um projeto para permitir que soldados em frente de batalha fossem operados a distância, por cirurgiões nos Estados Unidos ou em bases aliadas. A tecnologia ainda não chegou a esse ponto, mas o projeto deu o empurrão necessário para a criação dos robôs em funcionamento hoje.

Embora a simples menção da palavra robô remeta a um sentimento de desumanização - tema recorrente na literatura e no cinema de ficção científica -, na medicina os sistemas robóticos fazem o percurso contrário. Levam em conta as limitações físicas e emocionais tanto de quem opera como de quem está sendo operado, reforçando a dimensão humana.

"Tome-se o caso de tumores no reto, no fim do intestino grosso", diz o médico Antonio Macedo, especialista em cirurgia robótica do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. À medida que o cirurgião se aproxima da área afetada, também fica mais próximo dos nervos da ejaculação e da ereção. "Uma tremidinha nas mãos pode lesionar o paciente", explica. As consequências vão desde ficar impotente até passar o resto da vida com problemas para urinar. O robô analisa cerca de 1,5 mil vezes por segundo o movimento humano, corrigindo eventuais imperfeições. "Você chega tão perto que consegue ver os nervos, sem queimá-los. Cada corte tem décimos de milímetro. É um trabalho de ourives", afirma Macedo, membro fundador da Clinical Robotic Surgery Association, organização criada em 2009, em Boston, para aperfeiçoar os procedimentos da cirurgia robótica.

No Inca, os robôs são muito usados para tratar casos de cabeça e pescoço, como câncer de língua e garganta. Esses tumores são de difícil acesso, explica o dr. Santini. Para chegar à área afetada, às vezes é preciso retirar partes da mandíbula ou outros ossos. O câncer é vencido, mas o paciente sai mutilado. O Inca tem feito experiências na criação de próteses com impressoras 3D para substituir as partes do corpo eventualmente retiradas. O melhor, no entanto, é não precisar disso. É onde entram os robôs, que na maioria dos casos ajudam a extirpar o câncer sem alterar a fisionomia do paciente.

 
Luis Ushirobira/Valor / Luis Ushirobira/ValorArap, gerente do centro cirúrgico do Sírio-Libanês, na sala de treinamento com o robô Da Vinci: o hospital paulistano ainda é um dos poucos a usar o sistema robotizado no Brasil

 

Os sistemas robotizados também têm reflexos para quem maneja o bisturi. Embora pareça trivial, uma questão que interfere diretamente no sucesso de uma cirurgia é o cansaço, dizem os médicos. Às vezes, é preciso passar mais de dez horas em pé, com os braços levantados, se contorcendo para fazer os movimentos necessários para operar. "Com o robô, você trabalha em uma posição muito mais confortável", afirma o dr. Anuar Mitre, urologista do Sírio-Libanês.

Os sistemas robóticos são compostos de três partes: o robô propriamente dito, o sistema de vídeo e o rack. É neste último que o médico fica sentado, manipulando "joysticks" e pedais. O conforto proporcionado é tanto que está mudando o perfil dos cirurgiões. "Mais mulheres estão assumindo as salas de cirurgia", conta o dr. Macedo, do Einstein. A presença de mulheres na condução de várias cirurgias ainda era rara por causa do esforço físico exigido. Com o robô, operar não é mais só coisa de homem.

O principal gargalo dos sistemas robóticos está fora da sala de cirurgia. É o custo. O preço de aquisição de um robô varia de US$ 1,5 milhão a US$ 3 milhões, e há outras despesas consideráveis, como o treinamento de médicos, técnicos e enfermeiros - avaliado em US$ 6 mil a US$ 8 mil, não incluído o custo da viagem aos Estados Unidos - e a manutenção do sistema, que todo ano consome US$ 100 mil por robô.

O alto investimento restringe o uso dos robôs aos grandes hospitais. E mesmo nessas instituições há uma conta adicional para o paciente que quiser usar o sistema. No Brasil, os planos de saúde cobrem as cirurgias laparoscópicas, mas não o uso do robô. A diferença precisa sair do bolso do doente. Esse valor, dizem os médicos, não é usado pelo hospital para amortizar o preço de aquisição do equipamento. Basicamente, o valor cobre o custo do material descartável e despesas relacionadas à cirurgia.

As pinças acopladas aos braços dos robôs, por exemplo, podem ser usadas 10, 18 ou 20 vezes, em razão do desgaste. Cada uma delas tem um chip. Quando o número de vezes permitido acaba, a pinça é rejeitada pelo robô. É hora de substituir a peça, mas isso não é de graça. Uma pinça nova custa de US$ 4,4 mil até algo próximo a US$ 10 mil - e é preciso ter peças de reserva no estoque para o caso de uma eventualidade.

Os gastos altos não são exclusividade dos robôs cirúrgicos. Outros sistemas automatizados, como os de imagem, requerem um investimento pesado. Em uma sala do Sírio-Libanês, por exemplo, telas sobre uma mesa de exame exibem o que parecem ser flores tridimensionais, tingidas de cores fortes. Na verdade, é o retrato de artérias do corpo humano, feitas por outro robô, o Artis Zeego, da Siemens, que custa US$ 1,5 milhão. Com o uso de contraste, o robô mapeia o organismo e atribui números às imagens de cada parte do corpo. "O procedimento passa a ser uma operação matemática. É só fazer a conta para incluir ou tirar ossos, músculos, deixar só o que você quiser ver", afirma o dr. Antônio Esteves Filho, do grupo de cardiologia intervencionista do Sírio-Libanês. Com o resultado, é possível fechar aneurismas minúsculos, difíceis de detectar sem a ajuda do robô.

A demanda é por equipamentos mais baratos, menores e sem fio - o Da Vinci pesa meia tonelada e suas partes são ligadas por fios

Os valores envolvidos são tão altos que requerem segurança reforçada. Na sala onde fica o Artis Zeego, armários são protegidos por senha e têm conexão direta com a área de suprimentos. É neles que ficam os "stents" (usados no exame) e outros tipos de material. Cada caixinha custa entre R$ 12 e R$ 13 mil.

No caso das cirurgias, a maior parte dos pacientes chega aos hospitais particulares bem informada e não se intimida com o uso dos robôs, dizem os médicos. Com a chance de voltar mais rapidamente à vida normal, não se incomodam em pagar a diferença de preço. Para ter uma ideia dos valores envolvidos, no Sírio-Libanês uma cirurgia de próstata por laparoscopia custa R$ 18 mil; R$ 26,5 mil com a ajuda do sistema robótico.

Na rede pública, onde os robôs são ainda mais raros, é preciso definir critérios para escolher quem vai passar pela cirurgia robótica. No Inca, que integra o Sistema Único de Saúde (SUS), a escolha depende do tipo de cirurgia, da experiência dos médicos na área e da contribuição que a operação pode representar em termos de conhecimento acumulado para a instituição. O custo adicional é absorvido pelo Ministério da Saúde.

Em São Paulo, o robô cirúrgico chegou à rede pública na quarta-feira. A Secretaria de Estado da Saúde informou que vai investir R$ 2 milhões no custeio de cirurgias robóticas para beneficiar os 1.070 pacientes do Icesp nos próximos três anos. O robô foi adquirido pelo Ministério da Saúde.

A Intuitive Surgical, de Sunnyvale, na Califórnia, domina sozinha o mercado global de robôs para cirurgias. Fundada em 1995, a companhia recebeu em 2000 o sinal verde da FDA, a agência americana que controla alimentos e remédios, para lançar comercialmente o sistema Da Vinci, uma homenagem ao cientista, inventor e artista italiano. Desde então, 2.966 robôs foram vendidos em todo o mundo, segundo informações da companhia. Os equipamentos são feitos na fábrica da empresa em Mountain View, também na Califórnia.

Apesar desse domínio, a Intuitive, que negocia ações na Nasdaq, tem enfrentado desafios nos negócios. No quarto trimestre, vendeu 138 sistemas no mundo, frente aos 175 de um ano antes. A receita no período caiu 23%, para US$ 205 milhões. No ano, o faturamento cresceu quase 4%, para US$ 2,265 bilhões, enquanto o lucro líquido aumentou 2,19%, para US$ 671 milhões.

Estudos recentes publicados nos EUA vêm mostrando preocupação com o crescimento acelerado das cirurgias robóticas. As cerca de mil intervenções desse tipo feitas em 2000 se multiplicaram e foram 450 mil no mundo em 2012. As complicações também aumentaram, o que atraiu a atenção da FDA, que tem acompanhado de perto o assunto.

 
Divulgação / DivulgaçãoCatherine, diretora de inovação médica da Intuitive: "Creio que no futuro vamos ter robôs menores, para cirurgias mais específicas, e equipamentos grandes, com múltiplos fins"

 

Para especialistas, trata-se de uma questão aritmética - à medida que cresce o número de intervenções, aumenta a ocorrência de casos malsucedidos. "As complicações não são decorrentes do uso específico do robô", afirma o dr. Mario Leitão Jr., codiretor do programa de cirurgia robótica do hospital Memorial Sloan-Kettering, de Nova York. O centro já tem cinco robôs e negocia a compra de mais quatro. Americano filho de portugueses, o dr. Leitão conhece bem o Brasil, onde já esteve várias vezes. A questão é que médicos que não faziam laparoscopias nos EUA passaram a fazê-las depois dos robôs, relata o cirurgião, ampliando o número de incidências em geral, inclusive as que tiveram complicações.

"Na década de 1980, quando a laparoscopia começou a substituir a cirurgia aberta tradicional nos casos de vesícula, a taxa de complicações também triplicou nos Estados Unidos", diz o dr. Passerotti, do Hospital Oswaldo Cruz. "Mesmo assim, a incidência era muito pequena, de 1% dos casos."

Na comunidade médica, a expectativa é que a concorrência aumente em breve com a chegada de novos fabricantes de robôs ao mercado. Rivais do Japão, da Coreia e da Alemanha estariam interessados na disputa. As patentes da Intuitive estão expirando e a demanda dos cirurgiões é por equipamentos mais baratos, menores e sem fio - o Da Vinci pesa meia tonelada e suas diferentes partes estão ligadas por fios.

"Creio que no futuro vamos ter robôs menores, para cirurgias mais específicas, e equipamentos grandes, com múltiplos fins", afirma a dra. Catherine Mohr, diretora de inovação médica da Intuitive. Quanto às patentes, as mais próximas de expirar são as mais antigas. A companhia está na terceira geração de seus equipamentos. Um concorrente que se baseasse exclusivamente nas tecnologias cujas patentes estão vencendo faria frente à Intuitive de uma década atrás e não à companhia atual, afirma. No ano passado, a Intuitive investiu US$ 167,7 milhões em pesquisa e desenvolvimento.

A principal concorrência, segundo a dra. Catherine, não virá de outros fabricantes de robôs, mas de diferentes tipos de tratamento, que tendem a se diversificar, combinando várias linhas de pesquisa.

A resposta pode estar nos "nanobots" - robôs microscópicos que serão injetados no organismo humano. Ainda é cedo para dizer aonde essas pesquisas vão chegar, mas um número cada vez maior de peças começa a ficar à disposição dos pesquisadores em seus esforços para montar um quebra-cabeça coeso, com base em disciplinas diversas, como a genética e a miniaturização de componentes.

Com os "nanobots" será possível marcar células potencialmente perigosas para que os médicos possam iniciar tratamentos preventivos antes que a doença se manifeste. "Essa é a principal aspiração da medicina", diz o urologista Leonardo Otero Pertusier, de São Paulo. "Chegar antes da própria doença."

 


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