O asfalto ainda não chegou até a porta da Clínica de Saúde da Família Dr. Davi Marcos de Lima, na periferia de Lagarto – cidade de 100 mil habitantes a pouco mais de 70 km da capital sergipana Aracaju. O chão de terra batida ressecado pelo sol forte dificulta a passagem de carros, mas não evitou que a população do entorno, que inclui os Conjuntos Loiola I e II e o Jardim Campo Grande, crescesse. Essa disparidade significa falta de infraestrutura, sendo a pavimentação o menor dos problemas: a quase ausência de saneamento básico leva muitas crianças às unidades de saúde por problemas gastrointestinais, alérgicos, ortopédicos, entre outros.
No combate a estas dificuldades na cidade sergipana, um passo importante foi dado nos últimos meses. Dentro da clínica existe agora um sistema de telemedicina que inclui, além de uma sala adaptada com duas grandes telas imersivas, um equipamento móvel de conferência que permite aos médicos generalistas pedirem a opinião de especialistas em qualquer ponto da unidade de saúde. O sistema serve a um propósito nobre: evitar que crianças de famílias carentes se desloquem até a capital buscando atendimento, pois agora podem fazê-lo à distância, via internet.
Trata-se de uma ponta do projeto piloto conjunto entre a Cisco e a Universidade Federal de Sergipe (UFS), que lançaram na terça-feira (18) em Aracaju, em parceria com o Ministério da Saúde, a Secretaria de Saúde do Estado e as prefeituras locais, a segunda fase de implantação do Programa Avançado de Colaboração e Educação em Saúde. Além de Lagarto, uma unidade de saúde da família de Tobias Barreto, no interior do mesmo Sergipe, recebeu uma estrutura semelhante para conexão com os especialistas do Hospital Universitário da UFS. O objetivo é melhorar o atendimento especializado e a qualidade do serviço prestado às crianças e às famílias.
A expectativa da universidade é que as equipes médicas especialistas do HU realizem cerca de 80 destes atendimentos virtuais conjuntos por mês, com qualidade de som e imagem em alta definição suficiente para ajudar nos diagnósticos, muito embora a estrutura não sirva só a este propósito. Treinamentos e apresentações de projetos de pesquisa à distância, de alunos de medicina e outros cursos da área de saúde, incluindo conferências com instituições do eixo Sul-Sudeste, são possibilidades consideradas.
“Passamos por um momento de crescimento exponencial na oferta de cursos na universidade”, explicou Angelo Antoniolli, reitor da UFS, que nos últimos cinco anos teve o número de alunos triplicado, de 1 mil para 3 mil, grande parte deles na área de saúde. “Trata-se da possibilidade de construir um novo modelo de assistência em saúde, formar um aluno já capacitado nestas tecnologias [telemedicina].”
Com isso, Antoniolli se referia a atender mais pessoas, com mais qualidade e a um custo melhor, tríade perseguida por qualquer instituição de saúde no Brasil. Não se trata de simplesmente suprir a falta de médicos na região, assegurou. “É um modelo experimental cuja ideia é melhorar o atendimento, não suprir carências. O resultado vai servir para discutir políticas públicas. Acredito que a tecnologia da informação vai orientar políticas públicas em saúde”, disse o reitor durante a solenidade de lançamento da nova fase do programa.
O reitor não negou no entanto que a falta de médicos na região seja um componente da equação que a telemedicina, aplicada à formação de mão de obra, pode ajudar a resolver. A secretária de Saúde de Sergipe, Joélia Silva Santos, disse no mesmo evento que o projeto pode ajudar na “formação necessária de médicos generalistas que o SUS hoje requer”, principalmente porque é nos municípios “que o SUS acontece”. Tobias Barreto e Lagarto receberam profissionais do Programa Mais Médicos e do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), ambos do governo federal.
Até a inauguração apenas uma consulta conjunta foi realizada entre a clínica de Lagarto e o HU da UFS. O sistema de agendamento de consultas deve entrar em operação nas clínicas nos próximos dias e obedecerá a demanda dos moradores da região.
Tecnologia e gestão
A convite da Cisco, a reportagem do Saúde Web visitou a estrutura montada no Hospital Universitário da UFS. Uma sala de telepresença imersiva servirá não só para realização de consultas colaborativas entre interior e capital do estado, mas também para interação entre os corpos clínicos das unidades, inclusive em bancas de defesas de dissertações e teses – também evitando deslocamentos, mas neste caso de pesquisadores.
Somadas as estruturas de Lagarto e Tobias Barreto às do HU e da UFS, são quatro salas de telepresença TX Clinical e três equipamentos móveis do modelo VX Tactical. O data center do Centro de Processamento de Dados (CPD) da universidade dá suporte à conectividade e ao arquivamento de dados clínicos e de vídeo em nuvem privada. A rede óptica da universidade liga-se à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e à conexão da operadora Oi, sendo esta última responsável por chegar às duas cidades do interior. Cada uma opera a 10 Mpbs de velocidade, “suficientes para manter o nível de qualidade das conferências”, diz Mário Adriano dos Santos, médico e diretor do campus universitário da UFS em Lagarto.
Os pediatras que oferecerão suporte no sistema são especialistas em gastrologia e cirurgia bariátrica e alergologistas, no primeiro momento, seguidos por ortopedistas, neurologistas, e pneumologistas, entre outros, em um futuro próximo. Para facilitar o trabalho deles, o sistema permite a conexão de câmeras HD para transmissão detalhadas de lesões, além de dispositivos móveis, para chamadas de emergência fora do hospital. Técnicos da Cisco garantiram que é possível se conectar ao sistema em redes 3G, com velocidade de 100 Kbps.
“Consultas presenciais criam um laço mais forte, mas a distância é uma realidade”, disse Silvia Simões, chefe do departamento de pediatria do HU-UFS. Mas, segundo ela, na telemedicina o paciente também se sente seguro. “São dois profissionais olhando para ele. Talvez haja desconfiança a respeito dos equipamentos, mas essas barreiras tendem a cair.”
Em Lagarto, Josefa Mary Costa Silva, gerente da clínica de saúde da família, concorda com a médica de Aracaju. Para ela, a desconfiança faz parte da adoção da tecnologia, mas o resultado é “uma experiência maravilhosa”. “O deslocamento pode ser perigoso para as crianças”, disse, contabilizando entre 8 e 10 crianças que viajam semanalmente buscando atendimento em Aracaju.
Responsabilidade social
O projeto é faz parte do programa de responsabilidade social global da Cisco, o Connected Healthy Children, de quem recebeu suporte financeiro. Há iniciativas semelhantes em outros países, como Chile, China e Quênia.
No Brasil, o projeto foi dividido em três fases. Na primeira, que começou em outubro de 2013 e terminou em janeiro deste ano, os equipamentos e soluções doados pela Cisco foram instalados, os médicos treinados, e a equipe do Centro de Processamento de Dados (CPD) da UFS capacitada para dar suporte ao funcionamento do sistema – sendo esta última treinada pela integradora Sonda IT. Entre as soluções, equipamentos físicos (Cisco Telepresence) e softwares de colaboração (Show and Share, WebEx e Jabber), que permitem gerenciar comunidades de vídeo para fins didáticos, agendar sessões e acessar serviços por meio de dispositivos móveis.
Já a terceira fase do projeto, que sucede o funcionamento propriamente dito, começa no segundo semestre deste ano, quando a Cisco e a UFS pretendem divulgar estudos com os resultados dos atendimentos e o impacto do programa nas comunidades atendidas. Os resultados devem direcionar os rumos do projeto, bem como servir de driver para implantações futuras, inclusive no exterior.
* a reportagem visitou Aracaju e Lagarto a convite da Cisco do Brasil