Desoneração favorece setores com mão de obra mais cara
17/02/2014 - por Por Marta Watanabe e Tainara Machado | De São Paulo

Desde 2012, a carioca Quality Software, de serviços de tecnologia, paga a contribuição previdenciária sobre faturamento e não mais sobre folha de salários. Julio Britto Junior, diretor-presidente da empresa, estima que a mudança reduziu a contribuição previdenciária da Quality em valor próximo a 10% do faturamento que, em 2013, alcançou R$ 35 milhões. Como o segmento demanda mão de obra intensiva, com qualificação e treinamento, a folha de pagamentos é uma das despesas mais importantes da empresa, equivalente a cerca de 70% do faturamento da companhia.

Com melhora no fluxo de caixa, diz o executivo, a empresa ampliou investimentos e conquistou contratos. Como resultado, a companhia contratou cerca de 150 funcionários no ano passado, entre novas vagas e recomposição do quadro de funcionários, que agora conta com 350 empregados.

A Quality foi uma das 9,6 mil empresas do setor de tecnologia beneficiadas pela chamada desoneração de folha. Pela regra, a contribuição previdenciária de 20% sobre folha é recolhida a um percentual de 1% ou 2% do faturamento. As empresas de tecnologia, por exemplo, pagam 2% e estão entre os setores mais beneficiados pela renúncia, segundo economistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV) que, a pedido do Valor, analisaram a participação de cada setor no incentivo, a renúncia por empresa e por número de trabalhadores e a participação da renúncia em relação à arrecadação previdenciária de cada segmento.

A análise mostra que, dois anos depois e ampliada para mais de cinco dezenas de setores, a desoneração teve como principais beneficiários segmentos mais organizados, mais intensivos em capital ou com mão de obra mais qualificada, e menos vulneráveis às importações. A análise, feita pelos economistas José Roberto Afonso, Gabriel Leal de Barros e Vilma Pinto, foi feita a partir de números da Receita Federal, que tornou disponíveis dados sobre a renúncia até setembro, além de informações sobre arrecadação por setores da Previdência Social.

Para os economistas, a desoneração da folha, o mais caro incentivo tributário concedido pelo governo Dilma Rousseff, parece ter deixado para trás a justificativa inicial do benefício, baseada em elevar a competitividade de segmentos intensivos em mão de obra e mais expostos à concorrência do mercado internacional.

Um dos dados que mostra isso é o custo da renúncia por trabalhador de cada segmento. Levando em conta a renúncia de setembro e estimando o impacto proporcional do décimo-terceiro salário, cada trabalhador dos setores desonerados custa, em média, R$ 118 mensais para o Tesouro Nacional.

As maiores desonerações por trabalhador, com valores bem acima da média, estão em setores como transporte aéreo, no qual cada empregado significa R$ 764 de renúncia mensal. No mesmo grupo estão produtos farmoquímicos e farmacêuticos (R$ 432 por empregado), celulose e papel (R$ 233), indústria de veículos automotores (R$ 207 e tecnologia da informação (R$ 201).

Os segmentos industriais "originais" da desoneração têm renúncia per capita bem mais próxima da média. Na indústria de produtos têxteis, a renúncia é de R$ 125 mensais por trabalhador, na de vestuário, R$ 136, e na de calçados, R$ 146. Já alguns setores que foram beneficiados recentemente com a medida têm renúncia bem abaixo da média, como é o caso do comércio varejista, em que o custo da desoneração é de R$ 82 por empregado.

 

 

Esse segmento, porém, encontra oscilações nos dados da renúncia no decorrer de 2013, provavelmente em razão de uma confusão de regras que, na prática, excluiu ao menos parte do setor do benefício por alguns meses. O mesmo aconteceu com a construção civil. A Receita, porém, registra para o mês de setembro cerca de 5,3 mil varejistas como beneficiários da desoneração. O órgão divulgou dados da renúncia por 99 atividades segundo classificação do IBGE. A tabela ao lado mostra os resultados com corte para setores que respondem por pelo menos 1,5% da renúncia total do benefício, que totalizou R$ 13,2 bilhões em 2013.

A enorme dispersão do custo por trabalhador, diz Afonso, reproduz a desigualdade de salários e a qualificação de mão de obra. "Levando em conta o custo por trabalhador, a renúncia é maior em segmentos com profissionais mais qualificados, e setores intensivos em capital e tecnologia", diz ele. Os segmentos com menor renúncia por empregado, destaca, são justamente as atividades que exigem menor qualificação e são mais intensivas em mão de obra.

"A desoneração da folha, como muitos outros incentivos, reproduz a regressividade do sistema tributário." Os dados, diz ele, servem para um debate sobre o benefício. "A desoneração é a mais alta renúncia atual do governo federal. Há uma decisão a ser tomada sobre a manutenção do benefício e, em caso afirmativo, se ele será reduzido ou ampliado." A legislação valida o benefício até dezembro deste ano.

O custo médio da desoneração por empresa nos segmentos beneficiados segue uma lógica e estrutura muito parecida com a da renúncia por trabalhador. A média de renúncia por empresa é de R$ 24,3 mil mensais. O setor com maior valor de renúncia por empresa é o de transporte aéreo, em que o custo da desoneração atinge R$ 1,2 milhão ao mês por contribuinte. O valor mais alto do custo nesse setor se explica em parte pela quantidade de empresas. Segundo a Receita, 35 empresas de transporte aéreo estavam na desoneração em setembro de 2013.

O segundo setor mais beneficiado é o da indústria de farmacêuticos/farmoquímicos, com renúncia de R$ 269 mil mensais por empresa. Entre outros setores com custo acima da média estão os fabricantes de equipamentos de transporte, exceto veículos (R$ 260 mil mensais por empresa), serviços de escritório, incluindo call center (R$ 218 mil), transporte aquaviário (R$ 173 mil) e indústria de veículos (R$ 82 mil.

Na outra ponta, com renúncia por empresa bem menor que a média, estão comércio varejista, com desoneração de R$ 11 mil mensais por contribuinte, além de vestuário (R$ 12 mil). Para têxteis (R$ 21 mil mensais por contribuinte) e calçados (R$ 27 mil) o custo da desoneração ficou também bem próximo à média.

Os dados, mais uma vez, diz Afonso, indicam que a desoneração de folha, em um determinado momento, deixou de priorizar os setores mais vulneráveis e de trabalho intensivo. "Ao que parece, o instrumento passou a ser utilizado como um atalho para aliviar custos e melhorar a lucratividade em alguns segmentos."

A participação dos diversos setores na renúncia total também mostra panorama semelhante. As maiores fatias da renúncia, assinala a análise dos economistas, ficou para segmentos de serviços. Tecnologia da informação ficou com 11,7% de participação no valor total da renúncia, serviços de escritório, no qual se inclui call center, respondeu por 7,4% e transporte terrestre, 7,1%. O setores de calçados, têxteis e vestuário têm fatias menores, de 3,7%, 2,5% e 3,3%, respectivamente.

Carlos Pastoriza, diretor-secretário da Abimaq, que reúne as indústrias de máquinas, diz que o alcance do benefício foi diverso entre as empresas. Alguns ramos do setor, principalmente aqueles que produzem bens sob encomenda, são bastante intensivos em mão de obra, diz ele. Nesses casos, a renúncia proporcionada pela desoneração da folha de pagamentos alcançou até 4,5% do faturamento. "É expressivo em um setor em que se briga muito por preço", afirma.

O principal benefício para o setor, no entanto, foi conseguir melhorar um pouco a margem de lucro da produção nacional, "porque havia antes compressão muito forte, em função da concorrência com os importados. A medida nos desafogou um pouco", afirma.

O faturamento do setor, no entanto, recuou 5,7% em 2013, queda maior do que os 3,5% do ano anterior. A avaliação é de que, além da desoneração da folha, o conjunto de medidas implantadas pelo governo para proteger o setor - linhas especiais de crédito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES), taxa de câmbio mais desvalorizada e o Reintegra (que expirou em dezembro de 2013) - não foram suficientes para eliminar a defasagem de competitividade criada nos anos anteriores.

A situação pode ser um pouco melhor em 2014, avalia Pastoriza, quando a expectativa é que o faturamento volte a crescer, embora pouco, entre 1% e 2% em termos reais. "A recuperação nos Estados Unidos e na Europa deve aumentar a demanda e o real mais fraco também deve ajudar a melhorar as exportações e segurar importações", afirma Pastoriza, que estima redução de 10% do déficit comercial do setor no ano, para cerca de US$ 18 bilhões. Ao mesmo tempo, o mercado doméstico deve andar de lado.

Claudio Felisoni de Ângelo, presidente do conselho do Ibevar, que reúne executivos do varejo, também avalia positivamente a desoneração, embora reconheça que para alguns segmentos, como o varejo on-line e atacado, a renúncia possa ter se transformado em aumento da carga tributária, já que são setores com folhas de pagamento mais enxutas. O varejo, que não enfrenta competição externa, pôde aumentar a margem de lucro com base na desoneração. "É uma atividade com margem baixa, que tem se estreitado ainda mais pelos efeitos de competição e de padronização das operações", afirma.


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