Harmonização de vinho com comida é um tema que me atrai ?desde criancinha?. Não há nada de elitista em procurar um vinho que se adapte a um determinado prato, muito menos é bobagem se preocupar com isso, pregando a desmistificação do prazer de comer e beber bem. ?Pega bem? defender a popularização ou a ?dessofisticação? do ato de beber vinho, mas ninguém merece bebê-lo em copo de requeijão, servido à temperatura que está fazendo lá fora (neste verão, em particular), acompanhando um sanduíche de maionese de atum feito com pão amanhecido.
Mesmo seguindo os critérios básicos para se obter sucesso na tarefa de combinar vinho com comida, tenho em conta que não é necessariamente na primeira tentativa que se vai alcançar resultado satisfatório. Aliás, o lado bom da brincadeira é ir repetindo com algumas variações até encontrar a parceria ideal. Isso vale para a comida como vale para o vinho. Levando-se em consideração que os vinhos devem ser escolhidos tal como são, enquanto os pratos podem ser modificados e adaptados, há a opção de partir de um determinado rótulo (com garrafas de reserva para a eventualidade de ser necessária uma próxima tentativa) e adequar a receita. Ou, ao contrário, tomar por base a receita original e testar qual vinho combina melhor com ela. Joguinhos interessantes esses!
Nem sempre, porém, os resultados são conclusivos, o que reforça a tese que há sempre uma dose de subjetividade. Isso faz com que a brincadeira fique mais interessante e incentive discussões. É, acima de tudo, uma questão de gosto, algo soberano. Preferir um vinho a outro porque se ajusta melhor ao paladar de cada um. Tudo fica mais evidente quando se propõe, a um grupo de pessoas, dois vinhos com características diferentes para um mesmo prato, deixando que expressem suas preferências. Desde que não haja grandes incompatibilidades nas duas associações oferecidas, é quase impossível haver unanimidade.
Gosto e vontade têm significados diferentes. A vontade ? ?tudo bem que este vinho não combina, mas eu quero? ? se sobrepõe ao gosto quando se abdica do prazer insuperável que ocorre quando há perfeita afinidade entre vinho e comida. É que um valorizou o outro, ressaltando as qualidades individuais e engrandecendo a sensação final. É uma prerrogativa inalienável do vinho. Não há outra bebida que tenha a virtude de se harmonizar com os mais diferentes pratos. Aliás, a vocação do vinho é mesmo à mesa. Por mais que se possa discorrer sobre vinho e falar sobre seus atributos, é na refeição que ele tem condições de expressar plenamente suas qualidades e virtudes, principalmente se houver uma perfeita compatibilização com os pratos. É, isso sim, o que se pode qualificar de prazeres da mesa no mais alto grau.
A ?deixa? me permite voltar ao tema ?pescados com vinhos brancos? ? peço desculpas, nesse aspecto sou incansável. O assunto pode ser repetitivo, mas, desta vez, contrariando a tese da subjetividade em conclusões sobre qual vinho combina melhor com determinado prato, peixe no caso, há dados concretos (eu estava guardando esse trunfo na manga): essa velha regra foi comprovada cientificamente, conforme relatado em artigo publicado cerca de quatro anos atrás pela revista inglesa ?The Economist?, que um estimado amigo me enviou.
Que o vinho tinto não deve fazer par com produtos do mar se baseia tradicionalmente na presença de taninos ? a química que faz com que os vinhos tintos pareçam mais secos e causem uma sensação de aspereza na boca. Em estudo desenvolvido por um laboratório de pesquisa e desenvolvimento de produtos em Kanagawa, no Japão, um grupo de pesquisadores convocou sete experientes degustadores para provar vinhos tintos e brancos enquanto comiam vieiras. Os membros do painel foram instruídos a avaliar a presença de qualquer retrogosto de peixe em uma escala de zero a quatro, com zero, indicando nenhum desses ?aftertaste? e quatro indicando algum extremamente forte. Ao longo de quatro sessões, eles foram colocados diante de um total de 38 vinhos tintos, 26 brancos, 2 sherries, um vinho de sobremesa, um Porto e um Madeira. As bebidas foram oferecidas em ordem aleatória, em copos codificados.
As primeiras evidências apontavam que os vinhos associados a forte retrogosto de peixe tinham relação com altos níveis de ferro em sua composição. Para verificar que o ferro era realmente o vilão da peça, os pesquisadores conduziram uma segunda experiência, na qual eles adulteraram os vinhos e depois repetiram os testes. Aqueles tintos que continham muito ferro eram tratados com uma substância química chamada ?agente quelante? que tolhe o ferro em solução e faz com que fique quimicamente inerte. Por sua vez, ferro foi adicionado aos vinhos que não continham essa substância naturalmente. Foram adicionados também, separadamente, zinco, manganês ou cobre para ver se o efeito era exclusivamente causado pelo ferro ou se tinha relação com metais de modo geral. A equipe achou que o retrogosto sumiu de fato quando o ferro natural foi ?quelatado? e, vice versa, que a adição de ferro fez com que o retrogosto ficasse mais forte. E foi descoberto que o efeito ficou limitado ao ferro. Os outros metais não tinham efeito ou pouco efeito.
Concluindo, a chave seria monitorar o teor de ferro do vinho, o que, infelizmente, mesmo baseando-se no tipo de uva ou no solo, não há como adivinhar antes ? valeria para tintos como para brancos. Os dados divulgados sugerem, em todo caso, que vinhos brancos combinam bem com pescados, especialmente com frutos do mar, cuja sensação deixada pelo mar é mais marcante, porque os ácidos agem como ?agentes quelantes? ? vinhos brancos são mais acídulos ?, reduzindo o montante de ferro na combinação como um todo, independentemente de sua origem. Bingo!
Na escolha do vinho branco apropriado para determinada situação devem ser levadas em consideração as características do vinho e essas variam fundamentalmente com a uva com que ele foi elaborado. Internacionalmente falando, por terem mais facilidade de ser cultivadas em diferentes regiões do planeta, duas castas se destacam, a sauvignon blanc e a chardonnay ? a riesling, uma casta nobre, que dá vinhos excepcionais, não se adapta em qualquer lugar ?, com estilos bem distintos que definem duas vertentes: a primeira oferece vinhos sápidos, com mais sensação de frescor e leveza, atributos opostos à textura macia e mais corpo que a segunda confere.
Pensando bem, é exatamente leveza e frescor o que, a princípio, se espera de um branco e a ascensão da sauvignon blanc nos últimos tempos até pode ser encarada como um resgate do caráter básico desse gênero de vinho, depois de décadas de domínio absoluto da chardonnay no Novo Mundo. Enquanto se observa um gradual retorno da chardonnay às suas origens ? hoje em dia, ela está sendo vinificada com bem menos maquiagem que há alguns anos (a Borgonha, no geral, sempre se manteve fiel às raízes) ?, a sauvignon vai ganhando espaço.
A origem e modelo básico dos vinhos moldados com sauvignon blanc vêm da França, em particular de Sancerre e de Pouilly-Fumé, no Vale do Loire, assim como dos brancos de Bordeaux. Aliás, têm sotaque gaulês os dois vocábulos que formam seu nome, sauvage (selvagem) e vignon (vinha), e eles fazem referência às notas aromáticas, vegetais e silvestres que caracterizaram aqueles vinhos franceses. Foi, no entanto, a Nova Zelândia, no início dos anos 1990, que deu um toque mais moderno aos vinhos, acrescentando-lhes sedutores aromas cítricos e de frutas tropicais. Esse branco neozelandês fez sucesso, projetou o país no cenário vinícola do planeta e abriu caminho para que a casta fosse implantada em tantos outros lugares. É o caso do Chile, que, sem perder seu foco nos tintos, tem concentrado esforços nos sauvignons.
A despeito das diferençasque existem (sempre) entre suas respectivas regiões, Nova Zelândia e Chile, de uma forma geral, têm em comum a forte influência marítima, o que faz crer que esse seja um fator determinante para ambos os países se distinguirem em termos de vinhos sauvignon blanc no Novo Mundo ? vinhos costeiros tendem a ser mais frescos, com maior nível de acidez, contribuindo positivamente para o gênero em especial.
Embora o grosso da produção desses dois países seja direcionado para vinhos descompromissados, com mais ênfase para o caráter frutado que a variedade oferece, há espaço e condições para brancos sérios e estruturados, que ganham complexidade com o tempo. Dentre eles, merecem citação especial o neozelandês Clearview Reserve Barrique Fermented e o chileno Casa Marin Cipreses Vineyard, vinhos de exceção e destaques da coluna de hoje. São dois típicos vinhos costeiros, elaborados com esmero a partir de vinhas com baixa produção e uvas selecionadas.
O primeiro já dá sinais de fugir à regra por se situar em Hawke?s Bay, na ilha norte, região responsável por apenas 5% dos quase 20 mil hectares de sauvignon blanc plantados no país ? Marlborough representa 84%. O vinhedo, separado do mar por uma estradinha de terra, recebe os ventos frios do Oceano Pacífico, o que induz níveis altos de acidez (pH 3,18 e 8,4 g/l de acidez total neste 2011), condições aparentemente adversas, mas incapazes de demover Tim Turvey da ideia de ali se instalar em 1988. Para amansar esta fera, os vinhos são fermentados em barricas de carvalho francês, onde passam por ?bâtonnage? semanal, permanecendo em madeira por 11 meses. Os 9% de semillon na mescla final, e uma parte do conjunto passando por malolática, ajudam a dar untuosidade ao conjunto, fazendo com que lembre um branco de Bordeaux de Pessac-Léognan. Importado pela Premium, www.premiumwines.com.br, o preço em São Paulo (ST é maior!!) é R$155,40.
O Cipreses da Casa Marin também é fruto da convicção e perseverança de alguém (competente) que resolveu encarar o desafio de plantar, em 2000, um vinhedo numa leve colina encarando de frente o Pacífico, a apenas quatro quilômetros dele, na comuna de Lo Abarca, San Antonio. O vinho de Maria Luz Marin, proprietária e enóloga, virou referência nacional e internacional ? melhor sauvignon blanc do Chile com 95 pontos no guia Descorchados (inclusive este 2011) e cinco estrelas na conceituada revista inglesa ?Decanter?. Tem um pH de 3,22 e 6,55 g/l de acidez total, que até pareceria ser mais devido à mineralidade do vinho, sensações, contudo, plenamente equilibradas pela estrutura que o Cipreses apresenta e pelo aporte de textura advindo dos sete meses que uma parte do lote (7%) estagiou em barrica. Austero, ainda vai ganhar com mais tempo de garrafa, ou, antes disso, brilhará ao lado de um ?blanquette de veau? ou uma moqueca das boas. É trazido pela Zahil, www.zahil.com.br, e, num esforço conjunto do produtor e do importador, está sendo vendido a (meros) R$125,00.
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