Sem preconceito, dê uma chance aos brancos
06/02/2014 - por Por Jorge Lucki

Embora recorrente, não há como fugir do tema "vinhos de verão" nesta época do ano, ainda mais com o inusitado calor que tem feito neste início de 2014, com os termômetros batendo recordes históricos. Quem sabe isso estimule o consumo de vinhos brancos. Na verdade, bem sei, clima é só desculpa, já que a temperatura que faz lá fora pouco influi no processo de escolha do tipo de vinho que vai se beber. Mesmo que o verão sinalize para pratos mais leves e, portanto, vinhos no mesmo patamar para acompanhá-los, ainda é pouco significativo o aumento no consumo de vinhos brancos nessa época do ano - se bem que ultimamente vem crescendo.

Por mais que discursos modernistas, até estimulados pela liberdade de criação que caracteriza a culinária da atualidade, proponham ousar nas harmonizações entre vinho e comida, rompendo com conceitos clássicos, estou convicto da tese "peixe com brancos e carnes vermelhas com tintos", ao menos se o objetivo for realmente criar uma perfeita afinidade entre prato e vinho. Não dá para escapar do velho, mas inexorável, princípio básico de harmonização: um não pode ofuscar o outro. Peixes, em geral, têm carne macia e sabor delicado, sensações que ficam absolutamente prejudicadas diante da presença dos taninos e da maior potência, elementos que caracterizam os vinhos tintos.

É realmente uma questão de predileção e, embora isso seja soberano, cabe sempre lembrar que um dos grandes atrativos - e diferencial - do fantástico mundo do vinho é o ilimitado leque de opções existentes e é um desperdício não aproveita- lo. Partindo, no entanto, de um profissional da área é imperdoável.

Lembro-me de um jantar black tie que o Conseil des Grands Crus Classés, associação que reúne os mais prestigiados "châteaux" de Bordeaux, ofereceu aos representantes da imprensa internacional na Vinexpo de 2011, tendo por palco o Château Haut-Brion. Os anfitriões, com o esmero e requinte que sempre impera nessas ocasiões, convidaram três chefs franceses triestrelados - Alain Passard (L'Arpège, Paris), Anne-Sophie Pic (Maison Pic, Valence, no Vale do Rhône), Yannick Alleno (Le Meurice, Paris) - para que cada um concebesse um prato. Os vinhos haviam sido definidos previamente e eram todos tintos (os chefs também prepararam três pequenas sobremesas para serem escoltadas por um Château d'Yquem 1990).

A entrada coube a Alain Passard, que preparou beterrabas médias "ao dente" (devem ter passada um bom tempo marinando) com um vinagrete agridoce, cacau e mel de acácias, que fez uma surpreendente boa parceria com (tintos) Grands Crus da safra 2003. Uma receita criativa, que mostrou bastante afinidade com os vinhos.

O primeiro prato, que deveria se harmonizar com tintos de safras entre 1985 e 1996, teve Anne-Sophie Pic como responsável. Para tanto ela preparou uma lagosta assada levemente em manteiga de crustáceos, banhada num consommé do próprio crustáceo com frutos vermelhos e aromatizada com pimenta verde. Madame Pic arriscou e se deu mal, justamente perante profissionais da área, em particular vários sommeliers de renome, com título de campeões mundiais da categoria.

Ainda que incomodado com o que considero uma "furada" da chef - talvez alguns não tenham achado -, não cabia me levantar e ir atrás da opinião de outros, mas o fiz com meus companheiros de mesa, entre outros Serge Dubs, vice-presidente da ASI-Association de la Sommellerie Internationale, membro de seu comitê técnico e vencedor do campeonato em 1989, e duas jornalistas de vinho francesas. A condenação foi unânime. De nada adianta trabalhar com ingredientes de primeira, uma conhecida e elogiável diretriz de Anne-Sophie Pic em sua cozinha, se na prática o produto fica desvalorizado. Ou, no caso da lagosta, anulado.

No dia a dia de um restaurante, como o comandado por Madame Pic, o cliente tem a prerrogativa de escolher o vinho e, assim, não incorrer nesse erro. Mas, aparentemente, isso não acontece na prática. É o que pude concluir quando fui provar sua tão celebrada comida meses antes desse jantar em Bordeaux. Embora o menu preparado naquele dia pedisse majoritariamente vinho branco, a grande maioria das mesas ao meu redor embarcou de tinto do começo ao fim da refeição. No fundo, o apego aos tintos está tão consolidado (não só aqui no Brasil) que impede que se tire pleno proveito da atual e bem vinda fase em que os chefs se esmeram para conseguir a melhor matéria-prima, criando receitas no sentido de preservar seu sabor, sem maquiagens.

Cabe, porém (e também), perguntar qual é o papel do sommelier, profissional que toda casa com três estrelas no guia Michelin tem. Sua função é transmitir a mensagem do chef e fazer com que o cliente consiga captá-la. Se o vinho não for adequado o resultado final será ruim. O chef deveria se preocupar com isso. Caso contrário é talento e esforço desperdiçado. Igualmente, se é inquestionável o direito que cada um - o cliente - tem de exercer sua preferência, por que ir a um restaurante estrelado se a tão aguardada comida foi desfigurada pela escolha de um vinho incompatível com ela?

Vá lá que o "grand finale" de uma bela refeição merece um tinto. Contudo, da mesma forma, "uma bela refeição" pressupõe um cardápio composto por alguma entrada e (ao menos) um primeiro prato antes de fechar com o prato de resistência - queijos e sobremesa são complementos importantes, porém não obrigatórios. Invariavelmente a fase inicial pede brancos, ou espumantes. Isso não é problema se há quórum na mesa para dividir uma garrafa, caso contrário, caberia ao restaurante prever uma oferta razoável de vinhos em taça.

Poucas casas têm tal preocupação, alegando baixa rotatividade e consequente prejuízo com garrafas abertas e não consumidas integralmente. Vejo sob outro prisma: falta credibilidade ao restaurante (no quesito vinho) para ganhar a confiança do cliente a ponto de este acreditar na proposta e serviço de vinho do estabelecimento. Na dúvida se a garrafa foi aberta no dia anterior, ou até se é uma mistura de várias que sobraram, é melhor não pedir.

Voltando ao caso do restaurante de Anne-Sophie Pic, será falta de habilidade ou mera coincidência o sommelier não ter convencido ninguém a tomar uma taça de branco, pelo que notei quando lá estive?

Nem todo restaurante precisa de um sommelier, com a pompa que a função exige. Em muitos casos a falta de formalismo ajuda, mas é indispensável que a tarefa seja desempenhada com competência e segurança. Poucos exemplos são tão representativos desse conceito quanto a casa de Daniela Bravin, uma profissional pertencente ao que considero o grupo - bem pequeno - dos melhores da categoria no Brasil. Para quem não a conhece, cabe prevenir que não deve esperar encontrar alguém empombado, vestido formalmente, ostentando um reluzente cacho de uvas na lapela. Até porque nem combina com o estilo da casa que ela montou e que, "mesmo" com uma decoração à base de peças clássicas, tem sua cara.

Com seu jeitão moderninho, Daniela se desloca pelo salão com discrição e eficiência, está atenta a tudo - hoje ela não é mais só sommelière, é proprietária - e sabe tudo do que se refere a vinho em restaurante. O que conta não é número de rótulos na adega - grande e diversificada, de qualquer maneira -, mas o que ela pinça e propõe periodicamente, dando origem a uma carta de vinhos dinâmica, sempre eclética e, sem dúvida, adequada à cozinha. Vale o mesmo para a boa oferta de vinhos em taça, que, a rigor, não se limita rigidamente aos selecionados para o período. Outros eventualmente podem ser abertos, sem risco de encalhar - não vai faltar cliente para terminar a garrafa. Questão de confiança em que sugere.

O reconhecimento de um sommelier não é consequência da capacidade de atender às expectativas do cliente, mas, principalmente, em superá-las. Até certos limites, é importante frisar, já que existem clientes cujo mau humor e falta de educação são impossíveis de contornar. É o que presenciei neste início de ano em um restaurante de São Paulo, quando o sommelier, sempre atencioso e capaz, foi chamado de burro (!) por um conhecido encrenqueiro e pedante personagem da sociedade paulistana, pomposo com a garrafa de Château Pavie que trouxe de casa, a despeito do profissional respeitar plena e zelosamente o protocolo exigido. Aliás, não foi a primeira vez que assisti cena semelhante protagonizada por tão deprimente figura.

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br



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