A transformação digital molda o novo modelo de negócios no setor da saúde, balizado pelo acompanhamento constante do paciente e a promoção da saúde. “Não é algo simples”, avisa Joshua Newman, diretor médico da Salesforce, empresa de tecnologia especializada em nuvem e em sistema de gestão relacionamento. Mas o setor de saúde tem contado com o avanço tecnológico nessa jornada. Segundo Newman, a digitalização permitirá seguir os indivíduos desde a concepção até o final da vida. “A estratégia é manter as pessoas saudáveis, o que requer um relacionamento completamente diferente do existente hoje entre pacientes e médicos.”
Formado em medicina pela Universidade de Illinois, em Chicago (EUA), Newman escolheu trabalhar com tecnologia aplicada à saúde. Atua junto a instituições na construção da medicina do futuro. Entre os destaques dessa nova era, ele cita a combinação entre dados e inteligência artificial para entender e atender melhor o consumidor. O executivo esteve em São Paulo, na última semana, para a HIS Innovation Show, e concedeu entrevista exclusiva ao Valor.
Valor: O que de fato é essa mudança na área da saúde?
Joshua Newman: É sobretudo uma mudança cultural. Os médicos foram treinados para acolher e tratar doentes. A medicina se tornou muito eficaz em diagnosticar, operar, medicar. A estratégia funcionou muito bem até bem pouco tempo. O paciente procurava o serviço de saúde quando ficava doente e era tratado. O sistema de saúde recebia por isso. Mas a sociedade mudou. A pirâmide etária traz novos desafios. Estamos ficando mais velhos. Além disso, a vida moderna implica doenças diferentes. A saúde ficou mais cara.
Valor: A que doenças o senhor se refere?
Newman: Além de questões físicas, como ossos quebrados, é preciso tratar depressão, ansiedade, demência, doenças crônicas relacionadas ao envelhecimento, vícios e obesidade. Muitas doenças estão relacionadas aos hábitos e estilos de vida. Não dá para tratá-las com injeção, com pílula. É mais complexo. Para deixar as pessoas saudáveis, é preciso conhecê-las, acompanhá-las ao longo da vida, saber sobre a família, o local onde ele vive. É um cuidado que começa no pré-natal.
Valor: Por que as instituições têm dificuldade para atender essas novas demandas?
Newman: O sistema de saúde tem sido desafiado a pensar nas necessidades do paciente como consumidor. O que ele quer? Do que precisa? É algo bastante diferente da realidade de um hospital. Médicos têm uma forma muito própria de ver o mundo. Hoje, as pessoas buscam atendimento quando estão sentindo dor. Em geral, estão assustadas e querem respostas rápidas. É uma experiência de consumo que não começa bem. A promoção da saúde exige capacidade de antecipação. É uma estratégia para evitar que o indivíduo adoeça. Se ele adoecer, requer agilidade para aplicar o melhor tratamento disponível. O mundo digital traz essa pressa. Os consumidores querem, na saúde, as mesmas experiências positivas promovidas por lojas de varejo ou empresas de viagem. Esperam receber conselhos de seus médicos para que possam viver melhor. Já os médicos têm de organizar seu dia a dia para engajar os pacientes, educando-os ao autocuidado. Mudar um hábito pode ser mais difícil do que tratar uma doença.
Valor: Em que medida a tecnologia pode ajudar?
Newman: Primeiro temos de entender que a tecnologia é uma ponte, um meio para a saúde do futuro. Tem muito trabalho a ser feito dentro das organizações - o que engloba desde mudanças culturais até o desenho de modelos de negócios compatíveis com as necessidades dos pacientes. As instituições de saúde são empresas, como qualquer outra, e possuem dois públicos: os colaboradores e os clientes. Nesse contexto, precisam dar suporte ao corpo clínico e, ao mesmo tempo, zelar pelo relacionamento com o cliente. É importante agradá-lo. Os hospitais serão remunerados por resultado e, como toda empresa, vão buscar clientes fiéis, que confiem e queiram seus serviços. A boa notícia é que - nessa área corporativa - a tecnologia está pronta. Não é preciso inventar nada especificamente para a área da saúde.
Valor: Seria possível dar alguns exemplos?
Newman: O sistema de gestão do relacionamento com o cliente, por exemplo, é o mesmo que o utilizado por uma companhia de varejo. Basta a instituição de saúde estabelecer seus modelos e estratégias para adotar. A mesma coisa acontece no uso de algoritmos e inteligência artificial. A partir do momento em que se tem as bases de dados, as instituições podem estabelecer suas estratégias de automação e exploração de informações, em benefício de seus clientes. Isso permitirá que um médico, sabendo que um paciente tem um filho em idade escolar, ligue para ele e avise sobre vacinas e cuidados necessários para a idade. Isso é promoção da saúde. A informação estará no sistema, o profissional da saúde poderá acessá-la e planejar suas ações.
Valor: Os dados dos pacientes são informações sensíveis. O senhor acredita que as pessoas vão compartilhá-los com o sistema?
Newman: Sim. É uma questão de tempo. O desafio está em mostrar as vantagens do compartilhamento. Na área médica, há questões importantes para serem definidas quanto ao uso das informações. A principal delas é a propriedade dos dados. Hoje, as instituições de saúde detêm essa propriedade. Há projetos, em todo o mundo, para a implementação do prontuário eletrônico do paciente - em uma base aberta na qual as informações ficarão disponíveis para todos os agentes do sistema de saúde. Muita gente arregaçou as mangas para tocar projetos de integração de informações. Mas não há resposta pronta, nem tecnologia mágica para resolver um problema tão complexo. Por um lado, o paciente deve ser o dono das informações e determinar seu uso. Por outro lado, as empresas são responsáveis pela segurança e privacidade das informações. É uma questão que extrapola a solução técnica. Tem de haver um consenso que agrade pacientes, médicos, políticos e órgãos reguladores.
Valor: A digitalização também vai apoiar a formulação de políticas públicas para a saúde?
Newman: Há um potencial enorme para isso. A análise de dados pode ajudar os governos a serem mais eficientes nos cuidados com a população. Se formos capazes de conhecer as enfermidades prevalentes nos grupos populacionais e identificar suas causas, vai ser possível estabelecer prioridades.