“O limite do avanço é a ética”
03/01/2014 - por Marcelo Vieira
Considerado o pai da BIOÉTICA brasileira, o médico WILLIAM SAAD HOSSNE diz que é possível conciliar os progressos da ciência com os princípios éticos da sociedade, defende as pesquisas com animais, mas diz que há “exageros”, e sentencia: O Brasil não aceita o mercado de seres humanos.

William Saad Hossne é médico há 62 anos desde os 24. Se formou em 1951 pela USP- UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.  Ele é muito conhecido em uma área multidisciplinar: a bioética. Em conjunto com a professora Sonia Vieira, escreveu umas das obras fundamentais sobre o assunto no país, “Experimentação em seres humanos”, de 1986. E na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), ajudou a formular os códigos que norteiam as pesquisas científicas realizadas no Brasil desde 1996.
Em entrevista por telefone à revista FH, o Saad é categórico ao afirmar que, sim, é possível praticar ciência experimental de forma ética, e que o intuito dos códigos e resoluções não é frear o desenvolvimento da humanidade, mas sim precaver perigosos potenciais.
Revista FH: O senhor se formou em medicina em 1951, cerca de 62 anos atrás. Quais eram os dilemas éticos que continuam nos dias de hoje? O que mudou?
William Saad Hossne: O avanço de conhecimento científicos e tecnológicos nos últimos anos tem sido feito em uma escala realmente impressionante. Com a metodologia científica, o conhecimento avançou de maneira muito mais rápida do que até então. Ao final de dois séculos, esse avanço configurou o que se chamou de Revolução Científica, acoplada á Revolução Industrial. Somente no século 20 tivemos cinco revoluções. No século 21 se apresenta outra revolução, que é a junção de todas as outras atuando em conjunto, articuladamente, que trará uma doma de conhecimentos extraordinária.  E cada um desses avanços traz desafios éticos, pois novos conhecimentos serão aplicados no ser humano, e temos que cuidar destes aspectos.
 
FH: Quando o senhor se interessou se envolveu com a bioética? Por que razões?
Hossne: É um envolvimentos que seguiu uma linha natural. Naquele tempo tínhamos uma disciplina chamada Técnica em cirurgia experimental, que na verdade era um treinamento de técnicas operatórias em animais. Na história da medicina você vê várias pesquisas feitas em seres humanos que obedecem apenas a ética do próprio pesquisador o que culminou nos abusos nos campos de concentração cometidos por médicos nazistas. Como estava me dedicando a cirurgia experimental, isso me impressionou, pois achei necessário que houvesse uma ética na prática. Na década de 80, juntamente e com a professora Sonia Vieira, da Unicamp, publicamos o livro “Experimentação em Seres Humanos”. Chamávamos a atenção para a necessidade de normas brasileiras sobre ética em pesquisa, já que os documentos internacionais não tinham força. E no Conselho Nacional de saúde, onde fiquei de 1995 até 2007, onde propus a feitura das normas de ética para pesquisa em seres humanos que temos hoje. 
 
FH: Como o senhor avalia a pesquisa feita no Brasil, do ponto de vista ético?
Hossne: O Brasil, até 1988, seguia as declarações internacionais. No mesmo ano o Conselho Nacional de Saúde (CNS) decidiu criar uma norma para o Brasil. Criou algumas normas éticas para pesquisa médica em seres humanos. Foi um marco importante, mas infelizmente não pegou. Em 1994 propus ao conselho que fosse feita uma norma para o Brasil, agora à luz da bioética, de uma forma multidisciplinar. A primeira resolução, a 196/1996, é uma das mais completas do mundo, pela natureza bioética. Ouvimos a comunidade, com participação multidisciplinar.
 
FH: Algumas cientistas defendem que a reflexão ética sobre a pesquisa cientifica deve vir somente após os resultados. Eles alegam que da forma que ocorre atualmente se trava o desenvolvimento cientifico. O que o senhor pensa a respeito?
Hossne: É uma visão distorcida. Pelo menos as nossas resoluções não pretendem criar obstáculos à pesquisa, mas sim e tão somente que o conhecimento seja obtido e aplicado de maneira eticamente adequada. Nada é vedado, só não deve ser permitido aquilo que não é adequado, para o ser humano. Devemos aplaudir o novo conhecimento.  E devemos temer a ignorância e o obscurantismo. Porém a análise ética acontece numa escala mais lenta, porque ela exige tempo, reflexão, e senso crítico. É possível impedir coisas absurdas como o que aconteceu nos campos de concentração, ou mesmo fora, como experiências feitas propositalmente com pacientes doentes para ver como evolui uma doença. Isso pode ser previsto e impedido. O limite do avanço é a ética.
 
FH: Alguns futurologistas utilizam termos como “transumanismo” e “humanidade 2.0”, levando o homem a um novo estado de desenvolvimento. Alguns encaram a velhice como doença e cogitam a imortalidade. Chegaremos realmente a este ponto?
Hossne: Não sei se chegaremos, mas não acho que deva ser obstaculizado. Posso tirar proveito desse avanço para beneficiar o homem. Essa questão está quente e deve ser discutida para podermos analisar caso a caso o que pode ser feito. Quais são os riscos? E os benefícios? Cotejando uma coisa e outra é que nós vamos avançar. Se pudermos dar á humanidade melhores condições para tudo, desde que traga riscos menores que os benefícios, isso pode ser válido.
 
FH: quais avanços da biotecnologia o senhor considera atualmente mais relevantes para a humanidade, enquanto espécie? Quais são mais inquietantes, do ponto de vista ético?
Hossne: Todas essas tecnologias, particularmente a biotecnologia, que mexe com a vida, têm riscos e podem trazer benefícios enormes. Quando se criou a palavra bioética estava-se preocupada com o seguinte: o homem domina a biotecnologia de tal forma que pode evoluir para o bem, se aplicá-la de forma adequada, como pode se autodestruir.
 
FH: Clonagem foi um tema que causou grande comoção nos anos 90, mas parece te saído um pouco dos holofotes. Isso significa que os avanços nesta área pararam? Se sim, por qual razão?
Hossne: Quando se dominou a clonagem ela foi usada para criar a ovelha [Dolly, nascida em 1996]. Há momentos em que a pressão é maior para outros aspectos. Houve um aumento do uso das células-tronco, não de uma maneira tão agressiva quanto se pensava, mas partindo dos princípios de que  as células-tronco podem fabricar células nervosa, do miocárdio etc.
 
FH: Os testes de remédios e cosméticos em animais ganhou espaço recentemente na mídia, devido à invasão de um laboratório [do Instituto Royal, em são Roque, SP]. Como o senhor avalia esta questão?
Hossne: O que importa é avaliar de maneira ampla. Todos os documentos internacionais preveem que, antes de testar um produto em seres humanos, é preciso tomar todos os cuidados quanto aos riscos e benefícios. Recomenda-se que se faça pesquisas em laboratório. Um dos pontos é a aplicação eventual em animais de experimentação.  É a chamada fase pré-clínica, que serve para o pesquisador adquirir maior conhecimento, e as comissões de ética poderem analisar se já esta na hora de testar em seres humanos. Tudo para evitar que o ser humano seja submetido a risco muito sério. O que acontece é que há um abuso do uso dos animais. Existem certos conhecimentos, com as modernas tecnologias, em que se pode prever uma série de informações em que não seria necessário o uso do animal.
 
FH: No Brasil não é prática comum o pagamento de pessoas para que elas participem de testes científicos, como acontece nos EUA ou Inglaterra. Por quê?
Hossne: Quando estávamos criando os códigos esta questão foi discutida. A comissão [Conep] foi alertada e levou em consideração as disposições morais do Brasil. Não aceitamos mercado humano. Falamos em doação de órgãos, embora em outros países seja permitido vender um rim, ou prática de barriga de aluguel. Os hemocentros só aceitam doação. Dentro desta visão foi posto que não há pagamento. O voluntário não pode ser comprado, seduzido ou coagido. Nossas condições morais e éticas apelam muito mais para o princípio do altruísmo para conservação da espécie, um compromisso com a humanidade inteira. O que se poderia discutir, e isto sim merece análise é se o país em que estão os pacientes sendo testados em estudos multinacionais não deveriam receber royalties por isso. A implicação de recebimento é complexa, mas temos que levar em conta que nossas leis não permitem o mercado humano.  
 




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