Poucas pessoas se deram conta de que o Senado aprovou, no mês passado, uma emenda constitucional que muda o piso da saúde, ou seja, os recursos mínimos que devem ser aplicados pela União em ações e serviços públicos de saúde. Essa alteração foi introduzida pelos senadores, a pedido do governo, na emenda constitucional que cria o chamado "orçamento impositivo" e, por causa disso, perdeu-se na discussão. Mas é preciso jogar luz sobre ela, pois, caso aprovada, terá repercussão importante para os cidadãos e para as contas públicas.
Atualmente, a lei complementar 141/2012 estabelece que a União aplicará em ações e serviços públicos de saúde, anualmente, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual. Pela emenda constitucional aprovada pelo Senado, a União aplicará, pelo menos, 13,2% de sua receita corrente líquida (RCL) no primeiro ano após a mudança, 13,7% no segundo ano, 14,1% no terceiro 14,5% no quarto e 15% a partir do quinto ano.
Para entender melhor a questão, é importante rememorar como as coisas aconteceram. A Câmara dos Deputados aprovou, no fim de agosto deste ano, uma emenda constitucional que obriga o governo federal a executar as emendas parlamentares ao Orçamento, até o montante equivalente a 1% da receita corrente líquida da União. Essa proposta, apoiada com vigor pelo presidente daquela Casa, deputado Henrique Alves (PMDB-RN), foi chamada de "orçamento impositivo". O governo resistiu a essa proposta como pode, mas não conseguiu derrotá-la.
Ao mesmo tempo, ocorria um debate na sociedade sobre a necessidade de mais recursos para a área de saúde, expresso pelo movimento "Saúde + 10", que foi fortalecido pelas manifestações de rua em junho, em todo o país. Esse movimento colheu dois milhões de assinaturas a um projeto de lei de iniciativa popular propondo que seja destinado à saúde pública 10% da receita bruta da União. Esse projeto foi entregue aos presidentes da Câmara e do Senado. Duas comissões também foram criadas como o objetivo de propor alternativas para o financiamento da saúde pública, uma na Câmara e outra no Senado.
Quando a proposta de emenda constitucional do "orçamento impositivo" chegou ao Senado, o governo articulou com seus aliados para que 50% das emendas parlamentares fossem destinadas à área da saúde. Aceitou, inclusive, elevar o montante das emendas com execução obrigatória para 1,2% da RCL. Mas o que foi apresentado, na verdade, foi algo muito mais amplo. O governo propôs aos senadores uma mudança no piso constitucional da saúde, que acaba com a indexação à variação nominal do PIB e atrela os recursos mínimos para a saúde à receita corrente líquida da União.
A Frente Parlamentar da Saúde acusa o governo de ter ignorado o movimento "Saúde + 10", uma comissão especial da Câmara e uma subcomissão do Senado, que tratavam da mesma questão, ao alterar o piso constitucional. "O governo atropelou todo mundo", afirmou o presidente da Frente, deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), em conversa com este colunista. "O governo nunca quis o orçamento impositivo e contaminou a proposta com a mudança do piso da saúde", acrescentou. "Misturaram duas coisas que devem ser tratadas separadamente". Foi o que fez a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Ela dividiu em duas a PEC: uma para tratar do "orçamento impositivo" e outra, da alteração do piso da saúde. O governo se opôs a essa mudança e a discussão foi adiada para 2014. A divisão da PEC vai provocar um debate sobre o piso da saúde, que não aconteceu anteriormente.
Novo piso constitucional terá forte impacto fiscal
A proposta do movimento "Saúde + 10" e das comissões da Câmara e do Senado que discutiram a questão passou de 10% da receita bruta da União para 18,7% da RCL. O motivo para a mudança é que a União não fica com toda a sua arrecadação, pois repassa uma parte para Estados e municípios. A Frente Parlamentar da Saúde defende que se chegue aos 18,7% em cinco anos. O governo só aceitou chegar a 15% da RCL nesse prazo. A diferença é grande e o impacto fiscal também.
Pelos cálculos da Frente, caso a proposta do governo seja aprovada, seriam gastos R$ 5,9 bilhões a mais com a área em 2014, supondo que esse seria o primeiro ano da vigência da PEC. A Frente critica o fato de que dos R$ 5,9 bilhões, R$ 3,8 bilhões decorreriam das emendas parlamentares que teriam que ser executadas, como determina o "orçamento impositivo". Ou seja, o governo só colocaria um adicional de R$ 2,1 bilhões neste ano.
A Frente deseja que o governo destine, já em 2014, mais R$ 18,9 bilhões para a saúde, o que corresponderia a 15% da RCL, percentual que o governo só quer atingir em 2018. Para a Frente, haveria uma elevação anual desse percentual, até atingir 18,7% do PIB em 2018, como mostra a tabela abaixo. Qualquer que seja a fórmula adotada, o cenário é de elevação das despesas da União. Para se ter uma ideia, se a proposta do governo for aprovada, a União estará gastando R$ 22,8 bilhões a mais (a preços de hoje) com a saúde em 2018. Até agora não se apresentou, em toda essa discussão, a fonte de receita que financiará a ampliação desse gasto.