No período recente, muito tem se discutido sobre a carência de médicos no país. Outro problema de saúde pública igualmente relevante, porém menos notório, é como garantir estabilidade na oferta de medicamentos para a população. O Ministério da Saúde (MS) tem desenvolvido ações para estimular o complexo industrial da saúde, isto é, a produção local de medicamentos e equipamentos médicos. Em geral, países em desenvolvimento são desencorajados a adotar uma política industrial para este setor com o argumento de que os benefícios ao consumidor são pequenos; por outro lado, são estimulados a promover campanhas de amplo acesso a medicamentos. Se poucos países entendem produção de medicamentos como estratégia industrial como no Brasil, como entender essa inovação em política pública?
Gestores federais justificam que há um déficit expressivo na balança comercial do complexo industrial da saúde, altamente dependente de importações; seus críticos, por outro lado, sugerem que o protecionismo à indústria local seria inadequado, pois esta estratégia implicaria a aquisição de produtos nacionais a preços menos competitivos do que os do mercado global. Porém, é crucial considerar que políticas de saúde podem ser prejudicadas por lacunas no processo produtivo, sendo assim essencial estimular a elaboração de políticas industriais para complementá-la.
A produção de remédios é tão crucial para a efetividade da política de saúde quanto a oferta de médicos
As fragilidades no setor farmacêutico foram apontadas, principalmente, por políticas de saúde que são bandeiras de sucesso. A oferta de medicamentos para AIDS levou o MS a promover, na década de 90, um expressivo investimento nos laboratórios públicos na expectativa de produzir versões não patenteadas de remédios antiretrovirais (ARV). A importação desses produtos era limitada, pois havia uma preocupação com a estabilidade do fornecimento de empresas indianas (principais produtores de genéricos) e, além disso, a Índia deveria introduzir uma lei de patentes no ano de 2005, limitando a produção de medicamentos genéricos dai em diante. Se a importação de medicamentos não garantia a estabilidade da oferta, por outro lado, a produção local também serviu como um importante regulador de preço - como visto nas inúmeras negociações para compra de ARV.
A longo prazo, os laboratórios públicos demonstraram dificuldade para fornecer medicamentos mais sofisticados e complexos, o que evidenciou mais uma fragilidade de produção. Estes laboratórios públicos eram incapazes de produzir matéria prima para produção de medicamentos, sendo necessária sua importação. Ou seja, a maioria expressiva dos produtores locais eram meramente formuladores e empacotadores de medicamentos. Estudo patrocinado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, apontou que a parcela de fornecedores nacionais de matéria prima para os laboratórios públicos caiu de 27,4% (volume) em 2003 para 8% em 2005.
Foi nesse contexto que o Ministério da Saúde viu-se constrangido a estabelecer um acordo com a Abbott para a redução do preço de um importante medicamento para AIDS, o Kaletra, em vez de suspender os direitos de patente e produzi-lo em laboratórios públicos. Foi justamente o que ocorreu quando os direitos de patente sobre o Efavirenz (outro importante ARV) foram declarados de interesse público em 2007 e o país mostrou-se incapaz de produzir sua versão genérica, sendo, mais uma vez, necessária a importação.
Em resposta à crescente demanda por importação e à necessidade de aperfeiçoar o processo produtivo para suprir necessidades da política de saúde, o setor farmacêutico foi incluído na Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior em 2003, passando a receber aportes do BNDES por meio de uma linha de crédito específica (Profarma), configurando uma mudança na política prioritária do MS, por meio de um programa para o Complexo Industrial da Saúde (CIS). Este visou reorientar o papel dos laboratórios públicos, por meio de parcerias com empresas privadas para transferência de tecnologia e produção de medicamentos de maior valor agregado, com a garantia de compra de sua produção pelo governo federal. O MS declarou explicitamente que essa política visava reduzir a vulnerabilidade da política de saúde e alinhar os objetivos do SUS à necessidade de transformação da capacidade produtiva e às estruturas de inovação do país.
Outra fragilidade do setor farmacêutico ficou evidente com a introdução de uma regulação para medicamentos genéricos em 1999, que alterou os requisitos técnicos que as indústrias deveriam cumprir para registrar seus produtos. O argumento do MS era de que isto aumentaria a segurança dos mesmos. Entretanto, esta norma excluiria do mercado diversos produtores nacionais, incapazes de adaptar suas plantas fabris e processos às novas (e custosas) exigências regulatórias. Em resposta a essa fragilidade, o governo criou uma série de instrumentos para melhorar a capacidade da indústria nacional, entre os quais estava o Profarma. Inicialmente, aproximadamente 49% dos empréstimos do Profarma foram para melhoria das plantas fabris, para adaptá-las às novas exigências regulatórias. Mais recentemente, o programa passou a investir em inovação, de forma a atender necessidades específicas em saúde.
Assim, as condições de produção de medicamentos são tão cruciais para a efetividade da política de saúde quanto a oferta de médicos, do que decorre que as fontes de inovação nesse campo não podem ser negligenciadas. Intervenções na saúde catalisaram ações para promover o desenvolvimento industrial farmacêutico. Se por um lado, seus efeitos só serão conhecidos a longo prazo; por outro, há uma preocupação, da sociedade civil e empresários, com a transparência na condução desta política (Valor, 26/08/2013). Se estas ações estiverem sendo conduzidas de forma a favorecer interesses específicos, corre-se o risco que seus efeitos sejam corrompidos logo na partida.