Antes mesmo de pensarmos em utilizar a internet, a Faculdade de Medicina da USP em 1985 inseriu na sua grade curricular a disciplina de Informática Médica sendo que, os primeiros registros de utilização do que hoje seria chamada de telemedicina no Brasil ocorreu quando uma empresa privada realizou diagnósticos de eletrocardiograma por fax em 1994.
Contudo, a regulamentação acerca da utilização da telemedicina ainda é escassa no país apesar dos enormes avanços tecnológicos na área da medicina e a corrente preocupação com a qualidade e aumento da quantidade de atendimentos clínicos de um lado e a proteção dos dos pacientes, inclusive dos seus dados pessoais sensíveis, de outro.
Desde 2002 o uso da telemedicina no país é orientado pela Resolução 1.643 do Conselho Federal de Medicina (“CFM”), uma norma genérica que estabelece critérios mínimos focados na assistência, educação e pesquisa em Saúde, limitando, sobremaneira, a efetiva e eficaz utilização da telemedicina para o atendimento seguro dos pacientes.
Para se adaptar às novas tecnologias e às normas de proteção de dados pessoais, foi publicada em 6/2/19 a Resolução 2.227/2018 do CFM, uma norma que detalhava os procedimentos a serem adotados nas teleconsultas, telecirurgias e o telediagnóstico, ampliando o conceito de telemedicina adotado na Resolução 1.643 do CFM para incluir a “prevenção de doenças e lesões e promoção da saúde”.
No entanto, antes mesmo de entrar em vigor (uma vez que previa uma vacatio legis de 90 dias), referida Resolução foi revogada tendo em vista inúmeras críticas por parte de médicos e executivos da área da saúde.
Mas, afinal, o que implica a revogação da Resolução 2.227/18 do CFM?
Significa o atraso e a total falta de parâmetros para a realização da telemedicina. Um país com dimensões continentais deveria perceber que não se fala, apenas, da qualidade da medicina oferecida nos grandes centros urbanos.
Trata-se de um enorme desafio a ampliação do acesso a serviços médicos especializados em locais de difícil acesso, para idosos ou pessoas com mobilidade reduzida, do tempo gasto entre o diagnóstico e a terapia, da racionalização de custos e do apoio à vigilância epidemiológica, auxiliando na identificação e rastreamento de problemas de saúde pública.
Os maiores entraves para a adoção de uma regulamentação como a a Resolução 2.227/2018 do CFM, por certo, envolvem questões financeiras uma vez que referida norma preconizava, dentre outros, a necessidade de armazenamento de todos os dados de uma teleconsulta ou telecirurgia e, não apenas, os prontuários médicos.
Apenas para se ter uma ideia de custos, o armazenamento em nuvem de 50Tb por mês em São Paulo custa US$0,0405 por Gb, ou seja, valor superior em 50% a mais do cobrado para o armazenamento da mesma quantidade de dados de um usuário localizado na Califórnia (US$0,0226 por Gb).
Enquanto 1Gb pode armazenar milhares de prontuários médicos em formato word reeditável, por exemplo, este mesmo 1Gb, normalmente, dependendo da qualidade da filmagem, pode gravar um único filme de 2 horas no formato avi, ou seja, o custo para o armazenamento de imagens e sons de um procedimento telecirúrgico ou de uma teleconsulta é substancialmente mais elevado se considerarmos os valores para o armazenamento de prontuários médicos, mormente porque sempre haverá a necessidade de, no mínimo, um back up de segurança.
Note-se, ainda, que o aspecto de maior impacto a ser considerado é a necessidade de profissionais qualificados e de equipamentos com tecnologia de ponta que favoreçam a utilização e a gravação da teleconsulta ou telecirurgia sem perdas, tanto de áudio quanto de imagem. Para tanto, o responsável deverá ter um equipamento eficiente que impeça a entrada de malwares ou, simplesmente, falhe durante o procedimento.
Imagine-se, por exemplo, uma telecirurgia complicada que simplesmente é interrompida por falta de energia elétrica, falha do equipamento ou invasão de um vírus na internet!
Contudo, apesar do alto investimento requerido para a implementação em larga escala de teleconsultas e telecirurgias, o Brasil não poderá ficar limitado às ações da rede pública do SUS por meio Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, instituído pela Portaria 2.546/11, que se restringe à conscientização e educação da população sobre questões de saúde, com pontuais e escassos atendimentos específicos, como a implantação do serviço de eletrocardiograma à distância em Minas Gerais ou laudos e avaliações à distância de exames radiológicos de tórax no Rio de Janeiro.
Observe-se que, ainda que este Projeto tenha se expandido para todo o Brasil, o atendimento oferecido é limitado e precário, uma vez que as teleconsultas são realizadas por meio de chat, mensagens offline respondidas em um prazo de 72 horas, chamadas telefônicas e, em tese, por videoconferência.
A ausência de uma regulamentação adequada sobre a telemedicina no país gera insegurança jurídica, falta de critérios para aferição da qualidade dos serviços prestados e impede investimentos maciços em um setor carente.
Com o estímulo e aprovação, inclusive, de órgãos como a Organização Mundial da Saúde, o Brasil deverá adotar regras claras que envolvam tanto os aspectos técnicos de adoção da telemedicina como normas de proteção aos pacientes, observando as normas já existentes no Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, o Marco Civil da internet e a Lei Geral de Proteção de dados Pessoais que entrará em vigor em agosto de 2020.
*Rosana Muknicka, advogada do L.O. Baptista Advogados, e presidente da Comissão de Direito Digital da OAB de Cotia