Comer, beber e aprender
16/10/2013 - por Por Maria da Paz Trefaut | Para o Valor, de São Paulo

Ela não vê o menor constrangimento em jantar sozinha. Às vezes, faz escala numa cidade só para conhecer um restaurante. Se o tempo é curto, chega a trocar de roupa no banco traseiro do táxi, entre o aeroporto e o restaurante. "Foi uma ginástica absurda: entrei de moletom e saí toda arrumada", diz Rosa Moraes, dando risada de suas próprias loucuras. Diretora de Hospitalidade, Artes & Design da Laureate International Universities, grupo ao qual pertence a Faculdade de Gastronomia Anhembi Morumbi, ela é uma das principais testemunhas do quanto o ensino de gastronomia no Brasil evoluiu na última década.

A culinária foi uma surpresa inesperada e tardia em sua vida. Já tinha mais de 40 anos quando começou a frequentar restaurantes profissionalmente. De seis anos para cá ela é uma das juradas do The World's 50 Best Restaurants, ranking promovido todos os anos pela revista inglesa "Restaurant", e já visitou 21 das 50 casas vencedoras. "Sempre consigo uma reserva. A vantagem de ir sozinha é que me dão a maior atenção e sempre acabo falando com alguém. Muitas vezes o chef vem conversar comigo. Recentemente, cheguei no Astrid y Gastón, em Lima [o melhor da América Latina na lista da 'Restaurant'], às 14h e levantei da mesa às 17h30, depois de experimentar todos os pratos do menu degustação."

Nos últimos tempos, Rosa tem viajado tanto que, em alguns meses, passa pouco mais de uma semana em São Paulo. Aqui, vive num apartamento no Jardim Paulistano, com a cozinha aberta para a sala, que lhe permite receber os amigos do jeito que gosta: em volta do fogão. Quando viaja, ela representa a Laureate, que tem 140 mil alunos no Brasil espalhados em 11 universidades, das quais apenas seis possuem cursos de gastronomia.

Rosa morava em Connecticut, nos Estados Unidos, em 1997, quando foi convidada para formatar o primeiro curso superior de gastronomia do Brasil para a Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Ela havia entrado para o meio gastronômico anos antes, a convite de uma revista especializada, que lhe ofereceu uma coluna. "Eu? Escrever? Mas como?", disse Rosa, quando o diretor lhe pediu que escrevesse sobre os restaurantes de lá.

Como sua casa ficava a uma hora de trem de Nova York, ela conseguia jantar em Manhattan. Assim, começou a frequentar restaurantes a trabalho e foi ficando amiga de chefs. "Fui muito bem recebida. Os relações-públicas dos restaurantes me convidavam muito e, assim, acabei jantando várias vezes sentada ao lado de críticos do 'The New York Times' e de outras publicações. Naquela época, o fato de ser do Brasil suscitava muito interesse. Não havia blogs e a informação não circulava como hoje. Como não sou jornalista, eu contava tudo como se escrevesse uma carta e, depois, mandava por fax."

Muitas memórias dessa fase ela guarda na forma de cardápios. Como, por exemplo, a festa de 50 anos de Daniel Boulud, em 2005, um dos chefs franceses mais consagrados nos Estados Unidos, que possui 14 restaurantes pelo mundo e um staff de 1.300 funcionários. "Foi uma festa louca, que começou com um almoço com vinhos harmonizados pelo Robert Parker. À noite houve um jantar na casa de um de seus investidores e seguimos madrugada adentro numa 'disco' de Manhattan."

Quando remexe o baú de lembranças, Rosa se entusiasma. O jantar que celebrou os 20 anos do restaurante Charlie Trotter, em Chicago, em 2007, foi "inesquecível". "Ele convidou os melhores chefs do mundo e o preço era de US$ 5.000 por pessoa. Entre os que cozinharam estavam Thomas Keller, Ferran e Albert Adrià, Tetsuya Wakuda e Heston Blumenthal. Foram três dias de celebrações e um dos eventos foi um almoço na casa de Trotter para apenas 14 pessoas. Para meu deleite, fui convidada para todas as festas."

Aos poucos, Rosa começou a intermediar a vinda de chefs estrangeiros ao Brasil para darem jantares e participarem de debates. Mesmo com essas relações, ficou surpresa ao ser escolhida para ajudar na implantação do primeiro curso de gastronomia daqui. Formada em biblioteconomia, havia feito apenas cursos de culinária na tentativa de cozinhar melhor para seus três filhos. Um desses cursos foi no supermercado orgânico que havia na esquina de sua casa, o Mrs. Gooch's Natural Food Markets, no qual teve a sorte de ter aulas com a célebre Marcella Hazan, especialista em cozinha italiana.

Mas daí a montar o currículo de uma faculdade era outra coisa. Principalmente porque não havia livros em português nem professores. O primeiro livro a ser adotado na Anhembi Morumbi foi "On Cooking: A Textbook of Culinary Fundamentals", de Sarah R. Labensky e Alan M. Hause, que ela mesma comprou e enviou para o Brasil. A ideia era que o curso durasse dois anos, mas onde encontrar professores qualificados? "Fizemos uma parceria com a California Culinary Academy, de São Francisco, e levamos um grupo de professores para lá. Era preciso aprender tudo: desde como posicionar a lousa com relação ao fogão até como avaliar um aluno. Também vinham professores de lá para dar aulas básicas, como de padaria, por exemplo."

A primeira turma tinha 40 alunos, divididos em dois turnos: manhã e noite. Se no início o curso superior de gastronomia inspirou descrédito, hoje é muito procurado e por dois segmentos distintos: 70% dos alunos vêm do ensino médio e o restante é composto por pessoas com mais de 30 anos que busca uma segunda carreira. Por conta dos insumos e equipamentos, as mensalidades variam de R$ 420, nos Estados do Nordeste, a R$ 1.900, em São Paulo. Incentivada pela atividade universitária, Rosa cursou uma pós-graduação em gastronomia na Anhembi Morumbi e, agora, quer fazer mestrado. "Fui adquirindo conhecimento pedagógico. E o fato de ter ido pra Laureate, que está presente em 29 países, ampliou minha visão."

A procura pelo ensino superior na área de gastronomia deu início à concorrência. Outra faculdade que é referência no mercado é a do Senac. Há unidades na capital e em Águas de São Pedro e Campos de Jordão, no interior. Neste ano, 650 alunos foram matriculados na graduação. "A gente procura capacitar docentes. Para isso, estimulamos os alunos da graduação a irem para o mercado e, depois, voltarem como docentes", diz Felipe Viana, coordenador da área de desenvolvimento em gastronomia do Senac São Paulo. Um dos enfoques da faculdade, nos últimos anos, tem sido criar um curso especializado em cozinha brasileira, para fazer coro à valorização das técnicas e ingredientes nacionais.

Paralelamente à consolidação da universidade, o Senac investe, com sua editora, na publicação de livros. Dos 224 títulos na área de gastronomia, 52 são considerados obras de bibliografia básica para estudantes. Mas não é só a Editora Senac que aposta na área gastronômica. A recente entrada da Companhia das Letras no segmento, com um selo exclusivo para livros de receita, o Panelinha, mostra que o mercado tende a crescer.

A ampliação do ensino gastronômico também é um fato em pequenos cursos não profissionalizantes, fora do âmbito universitário. E pode ser constatada até pela escolha de São Paulo para sediar a primeira Chocolate Academy da América do Sul, inaugurada há alguns meses. O curso, que já existia em 14 países, é promovido pela Barry Callebaut, a maior fabricante de produtos de cacau e chocolate do mundo. Basta circular pelas instalações, que ocupam um andar de 473 m2 na avenida Paulista, para perceber a aposta da empresa no Brasil.

O chef francês Bertrand Busquet é quem coordena a escola, que oferece cursos básico, intermediário e avançado. Ele diz que o mercado de alta confeitaria está em fase de crescimento (30% ao ano) e que o país ainda está aquém do potencial que tem. "Há dez anos não dava para encontrar bons chocolates no Brasil. Foi o interesse na gastronomia como um todo que levou à descoberta do chocolate gourmet e à implantação da escola aqui", afirma.

 


 





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