Dinheiro na mão
30/11/2018
Entre as excentricidades do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) constava o hábito de só sair de casa com maços de dinheiro nos bolsos. A quantia em francos equivalia a cerca de US$ 2 mil, segundo biógrafos. Não era nenhum impulso paranoico derivado da guerra, precaução para a urgência de uma fuga imediata ou exibicionismo. A razão era a prodigalidade: o existencialista jamais permitia que alguém pagasse alguma conta em sua presença e distribuía fartas gorjetas. Se fosse hoje, Sartre poderia andar por Paris, além de alguns euros, com um vasto arsenal de cartões físicos de crédito e de débito, celulares, relógios e pulseiras que possibilitam o pagamento por aproximação. E estaria ansioso pela chegada dos códigos QR que, no ambiente da tecnologia blockchain, prometem substituir o papel moeda no futuro.

Se permanecesse fiel ao dinheiro, o filósofo não se sentiria, porém, deslocado no Brasil de hoje. A maioria dos brasileiros não abandonou, em pleno 2018, o modo como Sartre pagava suas despesas em meados do século passado: segundo o Banco Central, metade das transações ainda é realizada com dinheiro vivo. A última pesquisa do BC, feita em abril, sobre a relação do brasileiro com o dinheiro identificou uma queda na utilização do papel moeda nos últimos cinco anos, mas permanece de longe como o meio mais popular. No comércio, o volume de pagamentos em espécie recuou de 55% em 2013 para 50% em 2018, enquanto o cartão de débito subiu de 14% para 20% no período. Os cartões de crédito (de 26% para 25%) e os cheques (de 3% para 1%) retrocederam. Quase 96% da população ainda usa o dinheiro e 29% dos salários são pagos em espécie.


O ancestral dinheiro físico é para sempre? O instituto britânico Retail Banking Research (RBR) acredita que se algum meio de pagamento está ameaçado de extinção pelas novas tecnologias este não é o dinheiro, cuja posse é entendida como salvaguarda contra cataclismos, mas os cartões de plástico. O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs), Fernando Chacon, concorda, mas ressalva que o fim do plástico vai demorar, até porque sua fase de expansão ainda não terminou. "Trata-se de uma indústria que se mostrou muito resiliente durante a crise. O fato é que o consumidor se acostumou e se afeiçoou aos cartões", diz.

Depois de crescer a taxas de dois dígitos do Plano Real até 2014, a indústria de cartões continuou em evolução durante a recessão de 2015 a 2017, mas na faixa de um dígito (6,5% em 2016 e 9% no ano passado). O dado mais recente já mostra uma boa retomada. No terceiro trimestre deste ano, o volume de operações em reais feitas com cartões cresceu 14,7% em relação a idêntico período do ano passado. "No futuro, os plásticos serão substituídos por meios digitais os mais variados. Trata-se apenas de uma troca de tecnologia, para a indústria não muda nada", diz Chacon.

O diretor de cartões do Santander, Rodrigo Cury, diz que há uma conceituação equivocada nas previsões sobre a extinção dos cartões de crédito e débito. Na verdade, a tecnologia por trás dos plásticos, a dos chips, é que será trocada por novos códigos digitais. Mas toda a infraestrutura que hoje sustenta os plásticos - bandeiras, redes credenciadoras, bancos emissores e empresas garantidoras do sistema - será a mesma. Ou seja, os novos dispositivos não terão a forma de cartão, mas serão tão confiáveis e seguros quanto, e mais práticos e baratos, de preferência sem tarifa.

"Você vai à praia e não quer levar nem sua carteira nem seu celular. Entra no mar e depois quer tomar uma água de coco. Sem problema: você paga com sua pulseira à prova d'água", exemplifica Cury.

Percival Jatobá, vice-presidente de produtos, soluções e inovação da Visa, acredita que os tradicionais meios de pagamento, como dinheiro, cheque e cartões, irão conviver amistosamente com as novas tecnologias eletrônicas de pagamento por aproximação e as transferências instantâneas de recursos. "Sempre haverá espaço para todos os instrumentos", diz o executivo. "No centro de qualquer projeto ou expectativa de futuro, prevalece sempre a necessidade do cliente. Mesmo com o avanço das novas tecnologias, o costume do uso do plástico precisa ser respeitado e conservado."

Marcelo Kopel, diretor do Itaú Unibanco, enfatiza a atuação do mercado em função do interesse e dos desejos dos clientes. "Há diferentes perfis de clientes. Cada um terá a solução digital de pagamento que melhor lhe convier", diz.

Apesar do ritmo vertiginoso de criação de novos dispositivos de pagamento, não se pode vislumbrar ainda um ambiente que dispense a presença dos bancos. Por mais que as inovações insistam nos mecanismos de transferência com um mínimo de intermediação, a guarda dos valores que fornecem o lastro das operações persistirá nas instituições. "Por questões de rastreabilidade, segurança e autenticidade, garantindo-se que nenhuma transação será anônima, a presença de uma instituição, cujo risco e solidez são atestados pelo Banco Central, deverá continuar imprescindível", afirma Jatobá.

O BC é um entusiasta do uso dos meios eletrônicos de pagamentos, pois representam economia de custos com papel moeda, são difíceis de fraudar e ampliam a arrecadação de impostos. O diagnóstico da autoridade é de que ainda é exagerado o uso do dinheiro em espécie para pagamentos de serviços e movimentações entre pessoas físicas.
Pela posição do dia 23, o meio circulante (cédulas de papel e moedas) atingia R$ 229,3 bilhões. O BC defende a intensificação dos mecanismos que permitem a realização de pagamentos imediatos. Eles ajudam a contrabalançar as deficiências tanto das transferências de crédito via TED ou DOC (tarifas elevadas, dificuldade de endereçamento e ausência de confirmação das transações) quanto dos próprios cartões de crédito e débito (custos elevados e demora de entrega dos recursos ao beneficiário final).

Já os pagamentos instantâneos podem ser feitos em tempo real durante 24 horas por dia, 7 dias por semana e em todos os dias do ano. A movimentação se processa em poucos segundos entre contas correntes, salário, poupança ou de pagamento. Pode ser feita entre todos os agentes. E são necessários apenas um smartphone, uma conta em um prestador de serviço de pagamento (os PSP: bancos tradicionais, digitais, cooperativas, instituições de pagamento, fintechs, etc.) e o aplicativo deste PSP.
 
Começa-se, desta forma, a equacionar o dilema de como reduzir o pagamento em dinheiro derivado do fato de que quase 60 milhões de pessoas não têm conta em banco.

 
Fonte: Valor




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