“A saúde não é um brinquedo político, ela deve ser usada para promover o bem-estar e qualidade de vida. E isso só vai acontecer quando nos comprometermos a fazer da atenção primária à saúde a base da assistência universal.”
A afirmação é do diretor-geral da OMS (Organização Mundial de Saúde), Tedros Adhanom Ghebreyesus, durante a assinatura nesta quinta (25) de um acordo internacional em Astana, capital do Cazaquistão, em que 194 países membros da OMS, incluindo o Brasil, se comprometeram a fortalecer a atenção primária.
Chamada de “Declaração de Astana”, o acordo também comemora o 40º aniversário da histórica Declaração de Alma Alta, que exortou o mundo a fazer dos cuidados primários de saúde o pilar da cobertura universal de saúde em 1978.
Ocorre que, embora nos últimos 40 anos a expectativa de vida tenha aumentado e a mortalidade infantil caído pela metade, por exemplo, o progresso em saúde tem sido desigual e injusto entre países e dentro dos países.
“Devemos reconhecer que não alcançamos esse objetivo [saúde para todos]. Em vez de saúde para todos, conseguimos saúde para alguns. Temos ficado muito focados em combater doenças específicas, muito focados no tratamento, em detrimento da prevenção de doenças”, disse Ghebreyesus.
Quase metade da população mundial não tem acesso a serviços essenciais de saúde e, segundo a OMS, 100 milhões de pessoas são empurradas para a pobreza a cada ano por causa de gastos catastróficos em saúde. A atenção primária à saúde pode fornecer de 80% a 90% das necessidades de saúde de uma pessoa durante sua vida.
Questionado pela Folha se o crescimento de regimes autoritários e a ameaça à democracia poderiam piorar ainda mais o cenário da saúde universal, Ghebreyesus disse não acreditar nessa hipótese já que o acordo entre os países é unânime e amparado em fortes evidências científicas.
Não é o que pensam pesquisadores da delegação brasileira presentes no evento.
“Há uma ameaça real. Não só no Brasil como no resto do mundo em que governos de extrema direita assumiram o poder”, afirmou Ronald dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde, que faz parte da delegação brasileira no evento.
Para Ligia Giovanella, professora da Fiocruz, se mantido o ajuste fiscal e os cortes em saúde, as conquistas na atenção primária no Brasil correm sérios riscos de retrocesso.
A experiência brasileira com atenção primária, que hoje atende 130 milhões de pessoas, foi elogiada em três momentos do evento, inclusive pelo secretário de governo de saúde da Argentina, Adolfo Rubinstein. “O Brasil é nosso melhor exemplo”, disse ele.
Para o sanitarista Paulo Buss, da Fiocruz e também integrante da delegação brasileira, isso só foi possível porque houve continuidade de políticas em saúde, especialmente o programa saúde da família, desde o governo de Itamar Franco”, disse.
Estudos internacionais mostram que o programa ESF (Estratégia Saúde da Família) reduziu as taxas de mortalidade infantil e de mortes cardiovasculares.
Para Buss, o programa de imunização e o acesso aos medicamentos no SUS foram fundamentais para o sucesso nesses indicadores. “Você sai da consulta e já tem a medicação para doenças como diabetes, hipertensão, asma e verminose.”
De acordo com a Declaração de Astana, é necessária uma ação multissetorial que inclua tecnologia, conhecimento científico e tradicional, juntamente com profissionais de saúde bem treinados e remunerados, e participação das pessoas e da comunidade para que seja alcançada a tão sonhada saúde para todos com qualidade.
Reforça ainda a crescente necessidade de prevenção, controle e gestão de doenças não transmissíveis, como diabetes e doenças cardíacas, entre outras, que hoje são responsáveis por mais anos de doenças e mortes na maior parte do mundo, inclusive no Brasil.
Reconhece também a necessidade de remuneração adequada para os trabalhadores de saúde e investimento na educação, treinamento, recrutamento, desenvolvimento, motivação e retenção da força de trabalho.
Segundo Ghebreyesus, da OMS, os países devem se esforçar para oferecer e manter a força de trabalho em áreas rurais, remotas e menos desenvolvidas e não permitir a migração internacional do pessoal de saúde, o que mina a capacidade dos países em desenvolvimento de atender às necessidades de saúde de suas populações.