A formação cada vez mais completa do médico é tema constante na pauta das grandes faculdades de Medicina no Brasil. Sair do pensamento individual para o coletivo na formação de futuros profissionais e no tratamento dos pacientes, abrangendo a integração com outras especialidades da área de Saúde, é um desafio para ampliar o sentido da palavra “cuidar”. Isso envolve não apenas lidar com o paciente de forma mais ampla, mas até com quem convive com ele.
O tratamento, muitas vezes, pode significar para o médico ir além da sua atuação, exigindo a participação de profissionais de outras especialidades e até de diferentes campos da saúde, seja para cuidar do paciente ou das pessoas no seu entorno. Em renomadas faculdades de Medicina do País, considera-se, então, importante essa atuação coletiva, integrada a várias áreas da Saúde, mesmo que isso ainda não esteja na grade curricular.
“É uma questão extremamente oportuna. Vivemos um momento de fragilidade nos currículos médicos. O grande desafio é conseguir essa interprofissionalidade. Ela praticamente inexiste. É muito frágil, principalmente em escolas tradicionais, nas quais a visão do médico é como dono do saber. Nós temos trabalhado muito nisso. É um desafio muito importante e necessário”, afirma Aécio Gois, professor e coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Milton de Arruda Martins, professor de Clínica Médica na Universidade de São Paulo (USP), também acredita que é preciso rever essa visão e cita uma frase da Organização Mundial da Saúde (OMS) para ratificar a importância de uma grade que contemple a interprofissionalidade nos cursos de Medicina: “Aprender juntos para trabalhar juntos por uma saúde melhor”.
Necessidade. De acordo com Martins, já ocorreram mudanças. Porém, há ainda um caminho a ser percorrido para atingir esse objetivo. “O coletivo tem de vir primeiro. Precisase pensar um pouco na atuação de uma equipe, não só o médico fazer tudo. Tem prevenção, hábitos, os aspectos físico e psicológico, o estilo de vida. Sozinho, muitas vezes o médico não consegue resolver tudo”, reforça o professor de Medicina da USP.
“Durante o curso, o estudante tem de aprender a trabalhar em equipe. É importante que hoje haja uma disciplina que aborde isso, além de atividades e estágios, com estudantes de várias áreas atuando juntos”, acrescenta.
E é justamente na sala de aula que está a solução para transformar o individual em coletivo na atuação dos médicos, aponta o coordenador do curso da Unifesp. Ele destaca a importância da interação entre diferentes especialidades da Medicina na preparação dos estudantes. Segundo Gois, o objetivo é que eles saiam da universidade com um conhecimento mais amplo, capazes de atender às necessidades dos pacientes, tudo ligado ao conceito da interprofissionalidade.
Atuação. No entanto, para que isso funcione, de acordo com ele, são necessárias mudanças na grade curricular. “Se somos uma família tradicionalmente de gordinhos que são sedentários, ociosos, que comem mal e têm uma série de conflitos, devemos mudar os hábitos. Assim, um estudante de Medicina precisa aprender a fazer essa intervenção na família. Precisariam ir um médico, um educador físico, um psicólogo, uma nutricionista para ver tudo isso”, exemplifica o coordenador da Unifesp.
Martins concorda. “O aluno de Medicina, e depois o médico, tem de ter uma ideia clara do que são alimentação inadequada, inatividade física, uma série de problemas da saúde mental, ritmo de vida.”
Novo enfoque. Na Faculdade Israelita Albert Einstein, o método TBL (sigla em inglês para Team Based Learning), o aprendizado com base no trabalho em equipe, já permeia os seis anos do curso de Medicina, que também inclui na grade curricular a disciplina Humanidades. “Tudo é feito em grupo. Somos expostos desde o primeiro dia de aula a trabalhar em equipe. A aprender desde sempre a lidar com as diferenças, a ter empatia”, conta Daniela Harsanyi, estudante do Einstein.
“Discutimos muito que a saúde não é só uma doença específica. A gente quer promover um cuidado amplo para o paciente, e isso se estende para a equipe: técnico de enfermagem, enfermeiro, nutricionista, terapeuta, médico”, lembra Daniela.
No 6.º semestre do curso, a estudante pensa em se especializar em Cardiologia, mas destaca a interprofissionalidade como um fator primordial para o bom exercício da Medicina. “É fundamental partir desse conceito de saúde. Não basta cuidar de um problema pontual. É preciso estar atento a todas as áreas. Ao físico, ao emocional, tudo mexe e afeta a saúde”, afirma a estudante do Einstein. “Em doenças crônicas, por exemplo, não adianta só tomar remédio, a pessoa precisa mudar os hábitos. Precisa de uma equipe, realmente.”
Essa transformação passa por uma atualização nos cursos de Medicina, na opinião de Gois. Para o coordenador do curso da Unifesp as faculdades trabalham pouco com o médico que está no mercado. “Grandes instituições têm muito do ensino do século passado”, afirma Gois. “O que nós ensinamos tem de estar em cima com o que acontece no mercado. Precisamos sair das aulas tradicionais e ser mais interativos. Temos de fazer vivências e atividade práticas em conjunto com os diversos cursos. Precisamos sair dessa coisa do pedestal e trabalhar o conjunto”, diz o coordenador da Unifesp.
Vantagens. Inserir a interprofissionalidade no curso de Medicina, como defendem os especialistas, só traria mais benefícios aos pacientes. Professor da Universidade de Campinas (Unicamp), no Departamento de Alimentos e Nutrição, Mário Roberto Maróstica Junior lida com uma área que faz parte da integração das especialidades médicas. De acordo com o professor da Unicamp, vai na linha do que pensam os profissionais da área.
“É realmente algo necessário. É preciso haver uma intervenção nutricional e um educador físico para quem tem sobrepeso, por exemplo. No caso de obesidade, talvez ainda seja necessário entrar com medicamento, e isso precisa ter acompanhamento médico. A partir daí, há a necessidade de sinergia entre os diferentes profissionais”, endossa Mário Junior.
Na Unifesp, o coordenador do curso de Medicina traça planos para o futuro, de olho na modernização e na formação de um profissional mais completo. “Pretendo fazer uma disciplina de Medicina Culinária. Tem a ver com mudança de hábito, para que o médico saiba explicar como se come”, conta Gois. “(Nas aulas), que compareçam um educador físico para falar de sedentarismo, uma nutricionista que escolha produtos, chefs de cozinha, um psicólogo ou psiquiatra, para falar sobre felicidade, ansiedade, resiliência. Isso também se ensina”, conclui.