Cansaço e fraqueza são alguns dos sintomas da febre reumática, doença inflamatória que pode ter efeitos particularmente danosos nas válvulas do coração. Além de remédios, o tratamento pode incluir cirurgia, necessária em cerca de um terço dos pacientes. Mas há um grande porém.
Geralmente os candidatos à operação são pacientes graves, às vezes com uma ou mais operações cardíacas já realizadas. Asma e diabetes também podem aparecer como complicadores. Como separar quem realmente pode se beneficiar com a cirurgia de quem tem alta chance de morrer durante o procedimento?
Pesquisadores ligados ao Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (Incor), à Universidade de Coimbra (Portugal) e ao Impa (Instituto de Matemática Pura e a Aplicada), no Rio, elaboraram uma calculadora de risco que responde à pergunta.
A grande conclusão de um estudo, com base em dados de quase 3.000 pacientes operados entre 2010 e 2015, é que os fatores que mais interferem na chance de sucesso da cirurgia são o tamanho do átrio esquerdo (uma das cavidades do coração), o nível de creatinina (metabólito presente no sangue cujo nível aumenta quando há problemas renais), a realização de procedimentos anteriores nas válvulas cardíacas e a presença de hipertensão pulmonar.
O artigo científico foi publicado em julho deste ano na revista Plos One.
Omar Mejia, cirurgião do InCor responsável pela unidade cirúrgica de qualidade e segurança da instituição e um dos autores do estudo, explica que a febre reumática e a cardiopatia reumática têm origem em infecções, como a de garganta, que não foram bem resolvidas. Ao combater as bactérias, as células do sistema imunológico formam complexos que se depositam nas válvulas cardíacas, que passam a sofrer agressões do organismo, acumulando lesões e perdendo função.
A doença é mais prevalente em países subdesenvolvidos, por causa da maior dificuldade de acesso ao tratamento adequado com antibióticos. No mundo, estima-se que 300 mil novos casos surjam a cada ano e que 200 mil pessoas morram todo ano por causa da doença.
Quando o caso é cirúrgico —e a origem é reumática —, a reparação das válvulas (plástica valvar) é o tratamento ideal, mas também o mais difícil. As válvulas podem ainda ser substituídas por próteses biológicas ou metálicas.
Ao estabelecer uma maneira eficaz de medir o risco da operação, é possível tomar decisões mais conscientes como antecipar uma cirurgia para aproveitar condições favoráveis ou mesmo não realizá-la, dado o risco de o paciente morrer no procedimento. “É importante discutir com o paciente e com sua família a fim de esclarecer o que pode acontecer se ele for submetido ao procedimento”, diz o médico.
O problema é que não é tão simples saber quem corre maior risco.
Uma escala de avaliação mais simplificada poderia atribuir para cada variável importante um determinado número de pontos. Por exemplo, se a pessoa tem mais de 50 anos, ganha um ponto; se tiver mais de 70, dois, e mais de 80, três; se for diabética, leva mais dois pontos; se asmática, mais um; problema no rim, mais dois. No fim, o somatório dá uma ideia de quão grave é o caso.
Nem sempre, entretanto, a situação pode ser avaliada com uma conta de adição. Isso porque a interação entre variáveis pode mudar drasticamente o prognóstico do paciente. Num exemplo hipotético, duas condições que isoladamente já agravariam o quadro podem, em conjunto, ter efeito ainda mais grave do que o de uma mera soma.
Há ainda a possibilidade de algumas variáveis serem amenizadas. "Idade é impossível de corrigir, mas a presença de problema renal, se não eliminado, pode ao menos ser mitigado. No caso de emergência nem sempre dá tempo, mas em cirurgias programadas é possível melhorar o risco", diz Mejia. Para isso, é importante saber quais delas são realmente importantes.
Se considerarmos que dezenas de variáveis podem influenciar no prognóstico e que as combinações podem ser bem mais difíceis do que no exemplo acima, há uma clara limitação na capacidade humana de lidar com essa quantidade de informação.
É aí que entra em cena Jorge Zubelli, pesquisador do Impa e que coordena um grupo que busca aplicar conhecimento matemático em áreas que vão da saúde ao setor financeiro.
Para resolver essa questão médica, foram usadas ferramentas de ciências de dados e de redes neurais. “São tecnologias relativamente recentes que têm sido usadas no contexto da inteligência artificial. Essencialmente, trata-se de técnicas matemáticas para fazer uma validação ou previsão em uma situação complexa”, diz Zubelli.
“Há um movimento natural de inserir essas ferramentas na medicina, como no caso do diagnóstico por imagem. A área pode integrar também conhecimentos de diferentes tipos de exames, como os de sangue e os bacteriológicos ao fazer essa correlação cruzada para obter o melhor do mundo quantitativo”, afirma o pesquisador do Impa.
Ele exemplifica: “A tomografia computadorizada só foi possível porque havia algoritmos matemáticos sofisticados para gerar as imagens. Os dados são complicados, não é uma mera projeção, como no caso do raio-x. Reconstruir o interior do indivíduo com base só nas sombras não é uma coisa óbvia.”
Entre as diversas abordagens para resolver o problema dos pacientes com febre reumática com problemas de válvula, duas se destacaram: a floresta aleatória e a rede neural.
Uma forma de explicar as redes neurais é pensar no cérebro, órgão formado pela conexão de diversos neurônios. Em essência, os parâmetros são dados aos neurônios (entidades capazes de receber, processar e repassar informação) de entrada no modelo e a informação é recuperada nos neurônios de saída.
Só que, no meio do caminho, acontece muita coisa. Por cada camada de neurônios que a informação passa, ela é distribuída para vários outros, com diferentes intensidades. O peso é reajustado a cada etapa, gerando uma espécie de refinamento da informação. Quanto mais camadas intermediárias, mais contas, e mais acurado o resultado final.
No caso das chamadas florestas aleatórias, o primeiro passo é escolher aleatoriamente um punhado de características possivelmente importantes (como peso e histórico de asma, por exemplo) e calcular, baseado nelas, a probabilidade de a pessoa sobreviver ou não à cirurgia. Essa é uma árvore de decisão.
Outras árvores se baseiam em fatores diferentes, e, por isso mesmo, podem tomar decisões diferentes. O que interessa é que a aleatoriedade na “forma” das árvores e o grande número delas reduz os vieses.
Cada árvore tem um voto, e o resultado final é escolhido pela floresta. Daí é possível aprender quais fatores são importantes para predizer o risco de mortalidade.
No caso, a floresta aleatória teve o melhor desempenho entre os modelos usados —nota de 98,2 em uma escala que vai até 100. A rede neural vem na sequência, com 97,3.
A calculadora brasileira, baseada nesse estudo, teve um poder de predição melhor do que o de outras estrangeiras —a melhor delas tem nota de 87,6 na mesma escala. Uma explicação para o sucesso da RheScore (nome da calculadora) é o treino do algoritmo com dados brasileiros (da cidade de São Paulo, especificamente), algo até então inédito.
Essas calculadoras são baseadas em machine learning (aprendizado de máquina, área do conhecimento correlacionada à de inteligência artificial), e veem quais interações entre variáveis estão relacionadas a cada problema.
“Não enxergamos o algoritmo por dentro, mas sabemos que ele funciona. Não podemos esquecer, no entanto, que os índices de risco calculados valem exatamente para aquele tipo de paciente —não dá para usar o RheScore para avaliar o risco de outras cirurgias, como a de ponte de safena. Por mais que os fatores de risco sejam parecidos, os pesos podem ser muito diferentes”, afirma Mejia.
O médico afirma que essas calculadoras "são instrumentos práticos e objetivos para ajudar especialistas a tomar decisões melhores." Os próximos passos envolvem o aperfeiçoamento da calculadora com dados de outros grandes hospitais, tornando-a mais útil e abrangente.