Desenvolvimento de biossimilares deve ampliar acesso a terapias avançadas
30/08/2018
Não faz muito tempo, diabéticos tinham que usar insulina derivada de animais para sobreviver, pacientes de algumas doenças autoimunes se resignar com uma progressiva e irrefreável deterioração de sua situação e vítimas de certos tipos de câncer com uma morte dolorosa no curto prazo. Avanços na biotecnologia e engenharia genética, no entanto, abriram caminho para o desenvolvimento de diversas terapias inéditas para algumas dessas condições que revolucionaram seu tratamento.

São os medicamentos biológicos, que nos últimos anos melhoraram a qualidade de vida e deram esperança de cura, ou ao menos de maior sobrevida, a milhões de pessoas em todo mundo. Número que deve aumentar muito nos próximos anos à medida que as patentes destes medicamentos vão “caducando” e chegam ao mercado os chamados biossimilares.

Espécie de “genéricos” dos medicamentos biológicos, os biossimilares têm o potencial de revolucionar o mercado dessas drogas como os genéricos propriamente ditos fizeram com os remédios convencionas, e por isso são alvo de pesados investimentos de gigantes da indústria farmacêutica. E não é por menos. Usados do controle do diabetes ao tratamento do câncer, os biológicos estão entre as drogas mais caras do planeta, com um mercado que passou de US$ 200 bilhões (cerca de R$ 820 bilhões), ou 25% da receita total do setor farmacêutico, em 2016, e a perspectiva de dobrar de tamanho e chegar à casa dos US$ 400 bilhões (mais de R$ 1,6 trilhão) em 2025.

Entenda do que são feitos e para que servem

O que são medicamentos biológicos?*

São moléculas grandes, em geral proteínas que atuam como hormônios, enzimas, anticorpos ou outras funções básicas das células e do organismo. Por serem substâncias muito grandes e complexas, são produzidas por organismos vivos usando modernas técnicas de biotecnologia, e como são destruídos no trato digestivo, não podem ser administrados via oral, só por injeções.

Para que são usados?

Podem suprir deficiências na produção ou ação de substâncias, como a insulina em diabéticos, ou sobre uma série de outras condições que até pouco tempo atrás não tinham nenhum tratamento ou cura. Já os chamados anticorpos monoclonais são a base de algumas das mais avançadas terapias contra o câncer, e doenças autoimunes, como a artrite reumatoide e a psoríase.

O que são medicamentos biossimilares?

São os “genéricos” dos medicamentos biológicos. Como são substâncias muito grandes e de fabricação complexa, os biossimilares não são idênticos em estrutura e composição aos seus biológicos comparadores. Por isso, têm regras de aprovação mais duras que os genéricos comuns, devendo provar ação, farmacodinâmica e farmacocinética equivalentes em ensaios clínicos.

* Embora vacinas, plaquetas, plasma, outros elementos do sangue e algumas terapias personalizadas contra câncer também sejam classificadas como medicamentos biológicos, para fins de simplificação o termo na reportagem se refere apenas aos fármacos produzidos por biotecnologia para uso de um público mais amplo

- São medicamentos extremamente exitosos, que curam ou tratam coisas que antes não podíamos tratar – resume Gilberto Castañeda, professor do Departamento de Farmacologia do Centro de Pesquisas e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional do México (Cinvestav) e um dos palestrantes de recente seminário sobre medicamentos biológicos e biossimilares promovido pela farmacêutica americana Pfizer na Cidade do Panamá. - A inovação precisa de estímulo, e por isso as patentes são muito importantes. Mas depois, se os medicamentos se mostram eficientes e seguros, queremos beneficiar o maior número de pacientes possível. E é aí que entra a competição com os biossimilares.

Mas não é fácil desenvolver um biossimilar, quase tão difícil quanto criar um remédio biológico novo. O desafio começa pelo próprio tamanho e complexidade destas moléculas, muito maiores do que a dos medicamentos convencionais. Além disso, por serem em geral proteínas que atuam como hormônios, enzimas ou anticorpos no organismo, eles têm processos de produção extremamente complicados, envolvendo verdadeiras “fábricas vivas” de bactérias ou células geneticamente modificadas e cultivadas em chamados “biorreatores”.

E é aí que está a razão deles serem chamados “similares”, e não “genéricos” como acontece com os remédios convencionais. Com linhagens de organismos fabricantes e processos de produção diferentes dos biológicos originais, a composição e estrutura dos biossimilares também são ligeiramente diferentes destes. Assim, a regulação para a aprovação de um biossimilar também é muito mais rigorosa que a de um genérico convencional.

No caso dos genéricos comuns, exige-se basicamente que o princípio ativo e formulação sejam idênticos aos do original, com eficácia e segurança equivalentes referendados por ensaios clínicos limitados. Já com os biossimilares é preciso primeiro fazer uma minuciosa, e difícil, caracterização química e biológica da molécula para mostrar que ela é de fato muito parecida e se comporta como a do medicamento original. Seguem-se então testes de validação com animais e de farmacocinética e farmacodinâmica em humanos para enfiam a realização de ensaios clínicos mais amplos com pessoa, que embora não necessitem de tantos pacientes quanto no desenvolvimento de um medicamento original, chegam perto de tamanho.

REDUÇÃO DE PREÇO

Com isso, dados da própria indústria mostram que enquanto desenvolver um genérico de um remédio convencional consome em média investimentos de US$ 2 milhões a 3 milhões num período de dois a três anos e testes em 20 a 50 pacientes, um biossimilar precisa de US$ 100 milhões e US$ 200 milhões em investimentos, oito a dez anos de desenvolvimento e ensaios com cerca de 500 pacientes para chegar ao mercado, contra custos de US$ 800 milhões, também oito a dez anos de desenvolvimento e ensaios com 800 a mil pacientes de um biológico original.

Isso faz com que a perspectiva de redução de preço do biossimilar frente ao biológico original não seja tão grande quanto a que acontece com os genéricos, que chegam a custar menos da metade ou até um décimo do remédio de referência. Levantamentos nos EUA e Europa, onde o mercado de biossimilares está mais avançado, apontam preços cerca de 30% menores destas alternativas. Pode não parecer muito, mas para tratamentos que podem custar milhares de reais uma única injeção é uma economia bem-vinda para pacientes, hospitais, seguradoras e sistemas de saúde pública que eventualmente venham a incorporá-los em suas listas de medicamentos, como já acontece com o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

JÁ DISPONÍVEIS NO BRASIL

Aqui, já constam da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Ministério da Saúde, por exemplo, o infliximabe. Indicado para tratamento de artrite reumatoide, psoríase, doença de Crohn e colite, é um anticorpo monoclonal com ação anti-inflamatória. Teve seu uso aprovado nos EUA em 1998 sob o nome Remicade, da hoje Janssen. Já conta com dois biossimilares no Brasil: Remsima, do laboratório Celltrion; e Renflexis, da Samsung Bioepsis.

Desde o ano passado, no entanto, o infliximabe também é distribuído para 6 mil pacientes do SUS em cópia do original da Janssen produzida pela Bio-Manguinhos/Fiocruz, fruto de uma parceria para o desenvolvimento produtivo (PDP). Segundo Rosane Cuber, vice-diretora de qualidade da instituição, isso já está se traduzindo em economia de recursos para o sistema público de saúde.

A esperada queda no preço dos tratamentos com o uso dos biossimilares e pela pressão da competição sobre os custos dos originais também traz esperança de ampliação no acesso a estas avançadas terapias tanto via seguros de saúde quanto pelo sistema público. É o caso, por exemplo, da insulina glargina. Disponível desde o início dos anos 2000 com o nome Lantus, ela “revolucionou” o controle do diabetes com sua ação prolongada, menor risco de hipoglicemia e variação dos níveis de glicose no sangue e, portanto, das complicações associadas, destaca Hermelinda Pedrosa, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes. A insulina glargina teve o primeiro biossimilar (Basaglar) aprovado no Brasil no ano passado e outro (Glargilin) em julho. Segundo Hermelinda, o Basaglar chegou ao mercado com preço até 70% menor que o Lantus.

- As insulinoterapias do SUS estão completamente defasadas – critica. - E como o diabetes é uma doença epidêmica, que afeta cada vez mais pessoas, o número de pacientes não é desprezível. Então é fundamental que essas pessoas tenham acesso a insulinas melhores, que permitam uma qualidade de vida maior com menor risco de desenvolvimento de complicações. Então, a partir de uma redução nos preços tão expressiva como a trazida por biossimilares como o Basaglar, acreditamos que sua incorporação pelo SUS será mais rápida, numa perspectiva muito boa para esses pacientes que terão acesso a um produto com risco menor de hipoglicemia e outros problemas.

UNIÃO DE LABORATÓRIOS NACIONAIS

Outro biossimilar que chegou recentemente ao mercado brasileiro é o trastuzumabe, usado desde 1998 nos EUA e 1999 no Brasil no tratamento de câncer de mama inicial e metastático e gástrico avançado com o nome comercial Herceptin (Roche). Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dezembro do ano passado, o Zedora, do laboratório nacional Libbs, é um dos primeiros frutos do Grupo FarmaBrasil em sua missão de fomentar a inovação na área de biológicos e biossimilares no país.

Criado no fim de 2011, o FarmaBrasil faz a representação institucional e articula as ações de 12 laboratórios brasileiros - Aché, Biolab, Bionovis, Cristália, EMS, Eurofarma, Hebron, Libbs, Orygen, Pionn, Recepta e Blauver – junto às autoridades governamentais e regulatórias do setor. Desde sua criação, as empresas envolvidas já investiram conjuntamente R$ 2,6 bilhões no desenvolvimento de biossimilares, conta seu presidente, Reginaldo Arcuri.

- É importante para o Brasil que estes remédios sejam produzidos aqui, pois assim criamos um processo de competição permanente – destaca. - Isso é fundamental para um país com um sistema universal e gratuito de saúde pública como o nosso. Além disso, como o desenvolvimento dos biossimilares implica um alto nível de conhecimento científico sobre processos de produção que são muito complexos, com a formação de equipes capacitadas construímos a possibilidade de daqui a uns 15, 20 anos efetivamente também desenvolvermos moléculas inovadoras. Este é o pulo do gato que pode levar o setor no Brasil a se tornar no curto prazo um player de classe mundial, como somos no agronegócio, na aeronáutica e na exploração de petróleo em águas profundas.
Fonte: O Globo




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