Muita gente já ouviu falar sobre casos espúrios envolvendo a indústria farmacêutica, como a epidemia de mortes por opioides nos Estados Unidos, em que fabricantes de medicamentos mentiram sobre a segurança e o risco de dependência dessas drogas.
Agora é a vez da indústria de dispositivos médicos ser posta em xeque. O documentário "Operação Enganosa" (Netflix) examina esse negócio de US$ 400 bilhões, responsável por produtos como implantes de quadril e cirurgias robóticas.
Não é por acaso que o filme começa com o CEO de uma indústria falando coisas maravilhosas sobre dispositivos médicos, sobre como eles mudaram nossas vidas e como eles farão isso ainda mais no futuro. Um pouco mais à frente você vai descobrindo que esses dispositivos são tão mal regulados que a propagada "inovação" é maravilhosa apenas na teoria. Como esses produtos não são testados adequadamente, não sabemos se são seguros ou não.
Uma das vítimas é o médico ortopedista Stephen Towe. Após uma cirurgia de prótese de quadril feita de cromo e cobalto, ele teve problemas neurológicos por causa da presença dessas substâncias, que se separaram do produto e caíram direto em sua corrente sanguínea. Ao estudar a si mesmo, ele descobriu que seus níveis de cobalto, metal usado em baterias recarregáveis, eram cem vezes maiores que o normal.
Decidiu então trocar a prótese por outra de um metal diferente e conseguiu se livrar dos sintomas. Ele relata no filme que nunca teria acreditado que problemas neurológicos pudessem vir de aparelhos ortopédicos se não fosse por essa experiência. Agora, testa os níveis de cobalto de seus pacientes quando eles se queixam de sintomas de Parkinson ou demência.
Centenas de milhares de pessoas no mundo podem ter sido expostas a metais tóxicos de implantes de quadril “de metal sobre metal”, de acordo com uma investigação conjunta realizada em 2012 pelo British Medical Journal e pelo BBC Newsnight.
Uma série de fatores é responsável pelas catástrofes capturadas no filme, entre eles o processo de aprovação de dispositivos médicos pela FDA, a agência reguladora norte-americana. Para aprovar medicamento de prescrição, por exemplo, há uma série de exigências, como testes em humanos e dados sobre segurança e efetividade do produto.
O mesmo processo não é necessário para dispositivos médicos. Eles podem ser aprovados se o fabricante demonstrar que são equivalentes a um dispositivo já disponível no mercado.
Apesar das situações assustadoras descritas no documentário, há alguma esperança vinda do ativismo do bem, daquelas pessoas que se unem e lutam por mudanças. Por exemplo, a Bayer anunciou que interromperá as vendas de um dispositivo pouco antes do lançamento do documentário. Trata-se do Essure, um implante de controle de natalidade em forma de espiral que é inserido nas trompas de Falópio. Mulheres retratadas no filme se queixam de dor persistente, hemorragia e gravidez indesejada após o uso do dispositivo.
Em nota distribuída à imprensa internacional, a farmacêutica disse que decidiu parar de vender o Essure por "razões comerciais". Afirmou que vários fatores o tornaram menos popular entre as mulheres nos EUA, incluindo "publicidade imprecisa e enganosa sobre o dispositivo".
Como o documentário descreve, essa "má publicidade" tem sido impulsionada em grande parte por dezenas de milhares de mulheres reunidas no grupo Essure Problems no Facebook.
Essas mulheres realizam protestos em conferências médicas e na sede da Bayer e mantêm grupos de apoio para mulheres que acreditam terem sido prejudicadas pelo dispositivo. A decisão da Bayer serviu para encorajá-las, mas não é o bastante. É preciso mudanças mais profundas na forma como esses produtos são regulados.
Para Amy Ziering, produtora do documentário, os pacientes precisam estar mais vigilantes. "Se não podemos mudar as leis e não podemos convencer as empresas a colocar os problemas morais acima dos lucros, então todos nós realmente precisamos estar mais cuidadosos", disse ao jornal britânico The Guardian.
Os médicos também podem ser vítimas. Embora haja aqueles que se beneficiam dos "mimos" da indústria, muitos agem de boa-fé, baseiam-se em estatísticas que consideram precisas, mas esquecem que grande parte da pesquisa é financiada pela indústria e pode ser tendenciosa.
O fato de esses dispositivos terem passado pelo "crivo" da FDA também transmite segurança. Mas, como o tema regulação raramente é ensinado na faculdade de medicina, muitos médicos não sabem que estão implantando dispositivos que não foram testados em seres humanos.
Por último, como o relato de efeitos adversos é voluntário, há muita subnotificação. Muitos pacientes não associam o problema de saúde a um dispositivo implantado há anos no seu corpo.
Para mim, uma das mensagens centrais do filme é: quando você ouvir a palavra "inovadora", pare e reflita.
A inclinação de todos nós é pensar que o "novo é melhor". Não necessariamente. O novo pode ser realmente melhor, mas, às vezes, pode ser muito pior.