O futuro já é presente na luta contra o câncer. Nos últimos anos, diversos tratamentos baseados no uso do próprio sistema imunológico do paciente para caçar e matar tumores saíram das bancadas dos laboratórios para a aplicação clínica. Conhecidas genericamente como imunoterapias, elas estenderam significativamente a sobrevida dos doentes ou mesmo aparentemente promoveram sua cura. Ao mesmo tempo, conseguiram melhorar sua qualidade de vida, com menos efeitos colaterais que as convencionais radioterapia e quimioterapia.
É o caso, por exemplo, do câncer de pulmão, um dos mais comuns no mundo e o mais mortal, com cerca de 1,7 milhão de vítimas anuais. Não faz muito tempo, o diagnóstico da doença em estágio avançado era praticamente uma sentença de morte em curto prazo, com expectativa de sobrevida média de seis meses, lembra David Carbone, pesquisador e professor do Centro Médico da Universidade do Estado de Ohio, EUA, e um dos mais respeitados especialistas em câncer de pulmão do mundo. A introdução das imunoterapias, no entanto, mudou radicalmente o cenário.
— Hoje cerca de 15% destes pacientes com câncer de pulmão metastático (que
já se espalhou pelo resto do corpo) podem ter uma sobrevida de cinco anos com boa qualidade — destacou Carbone, que esteve recentemente no Brasil para participar de fórum de discussão com oncologistas sobre as pesquisas mais recentes na área, promovida pela farmacêutica AstraZeneca, em entrevista exclusiva ao GLOBO. — Nos estudos mais recentes com tratamentos combinados com imunoterapias, mais da metade dos pacientes tem uma sobrevida de três anos. Estamos tornando a vida melhor para a maioria dos pacientes, mas ainda temos muita pesquisa para fazer.
Assim, os cientistas buscam uma nova fronteira no combate ao câncer, e ela parece continuar ligada ao funcionamento do sistema imunológico humano, só que sob outro aspecto. As principais abordagens das imunoterapias em uso ou em fase avançada de pesquisas atualmente têm como base principalmente mecanismos do chamado sistema imunológico adaptativo, que compreende processos que incluem, entre outros, o reconhecimento de agentes agressores pelo organismo e a consequente fabricação de anticorpos e envio de células de defesa para marcá-los ou atacá-los, explorado, por exemplo, pelas tradicionais vacinas.
VÍRUS E BACTÉRIAS
Mas as imunoterapias atuais também incluem processos não exatamente imunológicos — e que apesar disso ainda são referidas como tais —, como o uso de vírus desenhados para se aproveitarem exclusivamente de mecanismos bioquímicos típicos de células tumorais para se replicar, eventualmente levando-as à morte. Desta seara fazem parte, por exemplo, pesquisas hoje em curso no Brasil e outras partes do mundo que pretendem usar o vírus da zika como plataforma para combater cânceres no cérebro, tirando proveito da afinidade “natural” que o micro-organismo tem por infectar células do órgão.
Agora, porém, os pesquisadores também querem convocar para a batalha o chamado sistema imunológico inato. De ação mais “genérica”, ele é o responsável pelas respostas inflamatórias. Os cientistas acreditam que ele pode aumentar ainda mais a eficácia das imunoterapias atuais em um ataque combinado contra os tumores, e também poderia ser usado isoladamente no combate e prevenção ao câncer, já que cerca de 15% a 20% dos casos da doença são relacionados a processos de inflamação crônica, como o câncer de cólon e a colite.
Na linha de frente dessas pesquisas está o italiano radicado nos EUA Giorgio Trinchieri. Chefe do Programa de Câncer e Inflamação do Instituto Nacional de Saúde americano (NIH), ele também esteve recentemente no Brasil para participar de evento em que foram debatidas as novas fronteiras no tratamento da doença. Segundo ele, a estratégia é unir as forças das respostas dos sistemas inato e adaptativo para matar o câncer.
— A ideia é montar uma resposta imunológica conjunta para atacar o tumor, para que no futuro tenhamos terapias combinadas que estimulem os sistemas imunológicos inato e adaptativo — disse. — A inflamação e a imunidade adaptativa andam e trabalham juntas. Embora esses processos tenham caminhos diferentes, é preciso um microambiente inflamatório nos tumores para que as células de defesa ataquem as cancerosas.
Para isso, é fundamental compreender o papel-chave que o chamado microbioma — os trilhões de bactérias e outros micro-organismos que vivem dentro de nós — tem na ativação e regulação das respostas inflamatórias, explicou Trinchieri:
— Este microbioma regula muitos processos fisiológicos do corpo, particularmente os de inflamação e resposta imunológica. Como qualquer imunoterapia contra o câncer depende da resposta das células imunológicas, o microbioma pode modular seu efeito e eficácia.
Esta noção também já chegou à prática clínica, contou o médico. Segundo ele, em experimento conjunto de seu laboratório com um hospital de Pittsburg, nos EUA, observou-se que tanto no caso de algumas das novas imunoterapias do tipo conhecido como inibidores de controles imunológicos quanto de algumas quimioterapias convencionais, pacientes que antes não respondiam aos tratamentos passaram a ter sucesso após receberem transplantes de fezes — e portanto do microbioma —, de pacientes que estavam se beneficiando deles, deixando clara a influência das bactérias do intestino na ativação e metabolismo desses remédios:
— Deveríamos saber quais bactérias são boas para isso, mas ainda não estamos lá. Então fazemos um transplante de todo microbioma. Essa estratégia deve ser aperfeiçoada nos próximos anos.
Enquanto isso, médicos e, principalmente, pacientes se beneficiam da revolução já trazida pelas imunoterapias em uso ou fase final de pesquisas. Antes “reservadas” para os estágios finais do câncer, elas começam a ser encaradas como primeira opção para o tratamento, disse Carbone:
— Estamos descobrindo que, quando damos a imunoterapia como primeira opção, ela funciona ainda melhor. Não sabemos qual será a sobrevida destes pacientes porque só estamos fazendo isso há poucos anos. Mas eles estão evoluindo muito bem.
“O que estamos descobrindo é que, quando damos a imunoterapia como primeira opção, ela funciona ainda melhor” David Carbone Pesquisador e professor do Centro Médico da Universidade do Estado de Ohio.