A tecnologia e a regulamentação
03/04/2018
No rastro de recentes e preocupantes sustos tecnológicos, com uma morte envolvendo um carro autônomo do Uber e o suposto uso inadequado de dados pessoais de usuários pelo Facebook, uma regulamentação mais rígida para o setor - nos moldes aplicados ao setor financeiro, por exemplo - tornou-se a questão política do dia. As cotações das ações das principais empresas de tecnologia estão em baixa - ou talvez apenas tornando-se mais voláteis - à luz de tais preocupações.

Obviamente, regras aplicáveis a veículos motorizados precisam ser examinadas cuidadosamente. Nos EUA, essa é geralmente uma decisão em nível estadual, embora o Conselho Federal de Segurança dos Transportes (NTSB) tenha uma reputação muito boa por suas investigações, e frequentemente mude a forma como consideramos as melhores práticas. O NTSB está investigando o acidente envolvendo o Uber e, anteriormente, já avaliou uma morte envolvendo um veículo da Tesla.

Quanto ao Facebook, reportagens na imprensa sugerem que a empresa pode ter cometido alguns erros gravíssimos. Esperamos poder conhecer mais detalhes sobre sua tomada de decisões quanto à privacidade de dados quando seu presidente e CEO, Mark Zuckerberg, depuser perante o Congresso, como concordou em fazer.

Mas reagir com regulamentação mais rígida em nível federal parece prematuro, mesmo para essas atividades - e especialmente no que diz respeito ao setor de tecnologia como um todo.

O setor financeiro é regulamentado em razão de importantes efeitos potenciais de contaminação: falências de bancos podem derrubar toda a economia. É por isso que redes de proteção, como um seguro sobre depósitos, foram colocadas em prática. Evitar abusos e incentivar a cautela apropriada exige regras, e a Corporação Federal de Seguros de Depósitos dos EUA (FDIC) é um dos melhores exemplos do mundo de como fazer isso funcionar.

O mundo da alta tecnologia - hardware, software e serviços digitais - é muito distinto. Há bastante concorrência no setor de hardware. Se uma empresa tiver problemas, ela não derrubará o sistema. É claro que alguns formuladores de políticas gostam de favorecer "campeões nacionais" em relação a concorrentes internacionais, mas isso levanta questões diferentes das relacionadas a comportamento regulamentador.

A iminente revogação da regra de "neutralidade da rede" pela Comissão Federal de Comunicações (FCC, em inglês) parece ser um grande passo em direção a favorecer grandes companhias e evitar que as startups digitais prosperem rapidamente

A Amazon é uma empresa poderosa e em ascensão e cobre diversas atividades - que hoje incluem lojas de produtos alimentícios e entrega de alimentos frescos. Mas há muitos concorrentes nessa área, e as regras e regulamentos existentes (como as que ditam como os alimentos devem ser manipulados) parecem suficientes.
Outras empresas no mundo digital, como o Google e a Apple, são muito fortes em atividades específicas. Mas não exibem o tipo de comportamento de monopolista em suas políticas de preços que deflagrem ações antitruste governamentais.

A União Europeia está considerando maior regulamentação para empresas digitais, e insistir em maior cuidado com o gerenciamento de dados pode fazer sentido. Mas a UE também, em larga medida, "perdeu o bonde" da onda de empreendedorismo digital surgida na década de 1990 e, de modo geral, não está hoje na vanguarda desse setor - de modo que pouca gente nos EUA está correndo para seguir seu exemplo.

Para evitar mal-entendidos, serei claro: nem tudo está indo bem no que diz respeito à política do governo americano nessa área. Em especial, a iminente revogação da regra de "neutralidade da rede" pela Comissão Federal de Comunicações (FCC, em inglês) parece ser um grande passo em direção a favorecer grandes companhias e evitar que startups digitais prosperem rapidamente. Andy Lippman, do MIT Media Lab, tem um excelente vídeo explicando essa questão e que deveria ser visto por todos os legisladores (e eleitores).

O Facebook parece atualmente um caso especial, no sentido de que efeitos de rede significam que milhões de pessoas permanecerão fiéis a esse serviço, independentemente de como sejam tratadas. O Facebook enfrenta uma pressão política compreensível no sentido de mudar suas práticas, mas o que realmente precisa é de concorrentes que comprovem poder ser lucrativo colocando a privacidade em primeiro lugar.

As criptomoedas refletem uma crescente superposição entre finanças e tecnologia. Não causaria surpresa se a Comissão de Valores Mobiliários americana (SEC, em inglês) determinasse que grande parte da recente atividade de geração de moeda (conhecida como "Initial Coin Offerings") nesse setor equivale efetivamente a emissões de títulos, o que deflagraria a aplicação de várias regras e exigências.

Sobre os carros autônomos, houve 40 mil mortes nas estradas em 2016, nos EUA, e mais de um milhão em todo o mundo, de acordo com os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde. Como em todos os anos anteriores, erros humanos de vários tipos foram responsáveis pela maioria dessas mortes. Reduzir as mortes nas estradas é um objetivo importante, e o crescente engajamento das empresas de tecnologia deve ser bem-vindo, visando melhorar a segurança nas estradas. Também nessa esfera, os princípios regulatórios existentes e as agências que os adotam e aplicam devem ter a oportunidade de comprovar sua eficácia. (Tradução Sergio Blum)

Simon Johnson, professor do MIT Sloan, foi economista-chefe do FMI e é coautor de "White House Burning: The Founding Fathers, Our National Debt, and Why It Matters to You", com James Kwak. Copyright: Project Syndicate, 2018.

www.project-syndicate.org
Fonte: Valor




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