Com a queda dos juros e o aparecimento de negócios de grande projeção e valor de mercado bilionário, as startups têm atraído um perfil de investidor até agora pouco habituado a essas iniciativas: os fundos de investimento que gerenciam as fortunas das famílias mais ricas do Brasil, os "family offices".
Os objetivos desses investidores são claros: buscar rentabilidade alta; obter contato com jovens empreendedores e diferentes modelos de atuação; e, quando tudo dá certo, gerar negócios.
"Quem está buscando investimento hoje está batendo na porta desses 'caras'", diz Tallis Gomes, fundador do aplicativo Easy Taxi, referindo-se aos "family offices".
Gomes, há dois anos, começou a dirigir uma nova empresa, a Singu, que acaba de concluir sua primeira rodada de investimento. A empresa opera nos mesmos moldes da Easy, só que em vez de conectar passageiros a motoristas de táxi, liga manicures, massagistas e depiladoras a potenciais clientes.
A empresa captou R$ 10 milhões com investidores pessoa física e "family offices". Entre os nomes estão as famílias fundadoras das duas grandes empresas de cosméticos e beleza da América Latina, cujos nomes são mantidos em sigilo. Um desses investidores terá assento no recém-criado conselho da startup, composto por quatro pessoas.
"Esses investidores têm uma empresa por trás, por isso têm interesse em se conectar com o que há de mais novo no mundo da tecnologia, saber o que está acontecendo. É um jeito de se defender do que pode vir e não ser surpreendido", diz o estrategista de um "multi-family office", que administra recursos de diversas famílias. Segundo ele, clientes têm trazido nomes de startups com mais frequência. Recentemente, o aplicativo espanhol Cabify entrou no radar. Nesses casos, a escolha sobre investir ou não acaba cabe ao cliente. "Não temos um histórico, ou as ferramentas para analisar [o potencial do negócio]. Fazemos a conexão entre as pessoas", diz.
Rodrigo Borges, sócio da Domo Invest, que montou um fundo de capital de risco para investir em startups com recursos de "family offices", diz que as tratativas com fundos de famílias individuais têm sido mais produtivas porque as conversas acontecem com quem toma a decisão.
Na primeira rodada de captação de seu fundo em 2017, a Domo recebeu recursos de sete famílias. Para a próxima rodada, que começa em abril, o objetivo é conseguir um número menor de famílias, com valores maiores. Os aportes, segundo Borges, têm ficado entre 2% e 5% do capital de seus respectivos fundos. O objetivo da Domo é captar um total de R$ 100 milhões para aplicar em 20 startups. Até agora, dois investimentos foram anunciados (NoVerde e AgendaEdu) e mais dois contratos foram assinados.
Borges observa que o interesse dos "family offices" em startups vem na esteira de aportes estrangeiros feitos em empresas como a 99 (vendida em janeiro à chinesa Didi, sob um acordo que atribuiu um valor de mercado de US$ 1 bilhão à companhia) e o Nubank, que levantou, no começo de março, US$ 150 milhões de sete fundos internacionais, sob um valor de mercado de mais de US$ 2 bilhões.
"Quando o cenário muda e o Brasil deixa de ser de alto risco, o capital internacional vem e os grandes negócios acontecem. E isso estimula o investimento nas empresas iniciantes, porque abre uma possibilidade de venda de participação lá na frente", diz Borges. Para ele, essa ampliação do acesso ao capital de risco é fundamental para as startups. "Não dá para ficar restrito só ao pessoal de internet [ex-executivos ou empreendedores que conseguiram vender um negócio ]."
Segundo a Associação Latino-Americana de Private Equity & Venture Capital (Lavca), os investimentos em operações de capital de risco no Brasil somaram US$ 859 milhões no ano passado, com 113 negócios. Foi um avanço considerável frente aos US$ 279 milhões e 64 negócios de 2016.
O total investido foi impulsionado pelos US$ 200 milhões que SoftBank, Didi Chuxing e Riverwood Capital colocaram na 99 e pelos US$ 135 milhões que a Movile captou com a Naspers e a Innova Capital em duas rodadas.
Na Singu, os recursos captados serão investidos em tecnologia, pessoal, marketing e no desenvolvimento de novas linhas de receita. Mas a relação com um "family office" e seus mantenedores pode ter benefícios que vão além do dinheiro. "Startups estrangeiras têm buscado investidores brasileiros para ajudar a ampliar mercado por aqui", diz o executivo do multi-family office.
O Valor apurou que, nos últimos meses, Cabify, Uber e Spotify entraram no radar dos investidores. O Spotify, que estreará na bolsa de Nova York em 3 de abril, teria levantado mais de US$ 20 milhões com famílias brasileiras.
O investimento em empresas estrangeiras pode ser feito por meio de fundos específicos registrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), além de recursos depositados fora do Brasil. Nesse caso, a negociação tem quem ocorrer fora do território nacional.
A HMC Itajubá, que faz assessoria para investidores internacionais na América Latina, fechou uma parceria com a GSV Capital, um dos mais importantes fundos de investimento do Vale do Silício, que tem US$ 1 bilhão em ativos e já colocou dinheiro em companhias como Coursera, Dropbox, Lyft e Uber. Segundo Agnaldo Andrade, sócio da HMC, a ideia é montar veículos específicos no país que deem acesso a investidores locais ao portfólio da GSV.
Com a iniciativa, afirma Andrade, a proposta é criar uma cultura de investimento global no Brasil. "O talento está distribuído de forma balanceada no mundo, mas as oportunidades, não. O nosso modelo de atuação quer criar uma rede global que conecte as companhias além do Vale do Silício", disse ao Valor, Michael Moe, fundador da GSV, durante visita ao Brasil na semana passada.
Para o executivo, o país é candidato a receber um dos 40 centros de inovação que a GSV pretende instalar ao redor do mundo. "O Brasil está no ritmo clássico de desenvolvimento do mercado. Há 15 anos, o Vale do Silício só tinha um unicórnio [startup com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão]", disse.