O Brasil vem formando cada vez mais médicos, o que fez disparar o número de profissionais em atividade no país e aproximar a proporção com relação à população geral dos níveis de nações desenvolvidas. Mas as desigualdades regionais na distribuição de médicos seguem profundas, o que prejudica ou mesmo impede o acesso de boa parte dos brasileiros a serviços básicos de saúde.
O diagnóstico é um dos muitos proporcionados pela pesquisa “Demografia Médica 2018”, realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) com patrocínio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e divulgada nesta terça-feira.
De acordo com o levantamento, em janeiro de 2018 havia 452.801 médicos registrados no país. São quase 90 mil a mais que os contabilizados em 2010, num aumento de cerca de 24% no período, e mais que o dobro dos que atuavam no Brasil em 1990. Com isso, a razão de médicos para cada mil habitantes também avançou, chegando a 2,18 neste ano.
O número coloca o país num patamar próximo de nações que também contam com sistemas públicos universais de saúde, como Canadá e Reino Unido, com 2,7 e 2,8 médicos por mil habitantes, respectivamente — o que não quer dizer, no entanto, que o atendimento por esses profissionais também está se tornando similar, destaca Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP que coordenou o trabalho.
— Tivemos um aumento quantitativo expressivo no número de médicos no Brasil, principalmente nos últimos anos — diz. — Mas o que percebemos é que essa alta, apesar de também ser importante, não significou uma maior presença de médicos em alguns locais, que ainda hoje não contam com a atuação de profissionais de saúde, mas sim uma maior concentração deles nos mesmos lugares. Assim, no caso do Brasil, essa razão não quer dizer que a população tem um melhor e maior acesso a médicos como em alguns países desenvolvidos.
Reformas profundas
Um exemplo radical disso é o Amazonas. No estado, 93,1% dos 4.844 médicos registrados estão na capital Manaus, cabendo aos 6,9% restantes, ou apenas 336, atender 62 municípios espalhados por uma área de 1,57 milhão de quilômetros quadrados. O levantamento, porém, não inclui os mais de 8,5 mil médicos estrangeiros, a grande maioria cubanos, que fazem parte do Programa Mais Médicos, já que eles não têm registros nos conselhos regionais nacionais, mas contabiliza os brasileiros que participam do programa.
Ainda assim, segundo Scheffer, o problema na distribuição dos profissionais não se limita a grotões e locais de difícil acesso como o sertão nordestino ou a Amazônia, atingindo mesmo a periferia de grandes cidades e capitais de estados do Sul e Sudeste onde a razão médicos por mil habitantes atinge e até ultrapassa a observada em países ricos, como o Rio de Janeiro, onde ela fica em 3,55. Outro ponto que o levantamento permite apenas entrever é o que ele chama de desigualdades dentro do próprio sistema de saúde. E, novamente, o Rio de Janeiro é um exemplo disso.
— Mesmo em locais onde existem proporcionalmente muitos médicos, como o Rio, faltam profissionais em várias situações e serviços, como prontos-socorros — conta.
Desigualdades regionais
Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e responsável por alguns dos primeiros estudos a traçar um perfil da comunidade de profissionais de saúde brasileira, publicados no fim dos anos 1990, Maria Helena Machado afirma que a solução para o problema da má distribuição deles pelo país deve passar por reformas profundas, não só no sistema de saúde como no político.
— Num país com as dimensões e diferenças na densidade demográfica como o Brasil, um número como essa razão de médicos por habitantes não quer dizer praticamente nada — avalia. — Assim, embora tenhamos um volume de médicos bem razoável, ainda precisamos estudar e implementar políticas que possam atender às demandas específicas de nosso país, que não são poucas. Precisamos ver o Brasil da forma desigual que ele é para diminuir essas desigualdades.
Segundo Maria Helena, a questão começa pela profusão de municípios no país, hoje 5.570, cerca do dobro dos que existiam nos anos 1960.
— A grande maioria desses municípios, 88%, tem até 50 mil habitantes, sem a mínima condição de sustentarem sozinhos sistemas de saúde, educacional e de assistência social de forma adequada — critica. — Isso os deixa totalmente dependentes das esferas federal e estadual. Então, o mais salutar seria, antes de tudo, uma redefinição dos municípios brasileiros, uma reestruturação geográfica que os reagrupe por parâmetros de sustentabilidade.
Maria Helena, no entanto, reconhece que a briga política necessária para que isso aconteça é praticamente impossível de ser pautada e ainda mais difícil de ser vencida. Assim, a saída seria buscar formas de otimizar o uso dos recursos da saúde, tanto em termos físicos quanto humanos. No caso dos primeiros, uma delas é a criação de “consórcios” regionais de saúde, com vários municípios se unindo num atendimento centralizado de seus habitantes, o que permitiria um investimento conjunto em infraestrutura e equipamentos. Já no dos profissionais de saúde — que além dos médicos ela inclui enfermeiros, farmacêuticos e odontólogos —, elas passam pelo estabelecimento de políticas de Estado para suas carreiras.
— É como se fosse um guarda-chuva de proteção maior do Estado para esses profissionais para que eles não acabem se sentindo reféns do prefeito do momento — aponta. — Essas políticas permitiriam ao profissional vislumbrar que não está solto nem só, estimulando sua fixação numa região. Assim, um médico que decida seguir uma carreira disponível num estado pode primeiro percorrer municípios de baixa densidade populacional e capacidade assistencial, mas sabendo que em algum momento, se precisar, terá apoio e condições as quais possa recorrer para seus pacientes, como equipamentos e estruturas para atendimentos mais complexos, e com o tempo, se quiser, também “migrar” para municípios de maior porte no estado.
Mais escolas e mais vagas
Ainda segundo Maria Helena, o Brasil tem todas as condições básicas de dar esse “salto” na saúde pública, tanto por já ter um sistema universal de saúde bem estabelecido, o SUS, quanto pelo “rejuvenescimento” de sua comunidade médica, inclusive detectado pelo levantamento. De acordo com a pesquisa, aqui a idade média dos médicos atualmente é de 45,4 anos, número que vem caindo e deve continuar a cair com a ampliação das vagas nas escolas de medicina — 104 delas abertas só entre 2013 e 2017, num total de quase 30 mil vagas em 289 cursos em todo país — e a chegada ao mercado desses profissionais.
— O SUS deve tomar para si a responsabilidade de dar essas condições gerais de carreira e de trabalho para os profissionais de saúde — defende. — As mulheres são uma das principais razões por trás desse rejuvenescimento da comunidade médica brasileira, e elas tendem a querer trabalhar num emprego só ou em menos lugares, se dedicar com mais afinco a uma população e assegurar uma maior estabilidade profissional. Assim, temos só aí uma grande população de profissionais para quem esses tipos de políticas de carreiras de Estado para a saúde seriam muito bem recebidas, atendendo tanto os desejos dos profissionais quanto as necessidades do país. Tudo isso representa uma oportunidade que o Estado não deveria perder e uma necessidade para todos nós que precisamos e usamos os serviços públicos de saúde.