A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) já notificou quatro operadoras de planos de saúde que se negaram a cobrir procedimentos prescritos por médicos estrangeiros do programa Mais Médicos, do governo federal. A entidade que representa os convênios os tem orientado para que, nesses casos, só aceitem pedidos assinados por médicos de fora caso tragam, também, o carimbo de seus supervisores - prática considerada ilegal pelo Ministério da Saúde e sujeita a punição na Justiça.
O Valor teve acesso a um documento de agendamento de exame obstétrico emitido em 23 de janeiro por uma clínica particular de São Paulo (SP). Nele, constam as instruções da operadora Sul America, em cuja última linha, lê-se: "Pedido médico de médicos do programa Mais Médicos - Não aceita".
Procurado, o plano enviou nota genérica informando que os pedidos "são autorizados conforme rol, diretrizes e resoluções da ANS", sem comentar o caso em específico. A agência não divulgou se tal conduta é uma das quatro reclamações computadas em seu sistema desde 2014, ano seguinte ao lançamento do programa Mais Médicos pela então presidente Dilma Rousseff.
Situação semelhante ocorreu em 2015 em Currais Novos (RN), a 170 quilômetros de Natal. Segundo apurou o Valor, a Amil não autorizou a cobertura de um hemograma completo prescrito por um médico cubano conveniado ao programa. O sistema da operadora teria recusado o registro profissional provisório emitido pelo Ministério da Saúde, o chamado RMS, tornando imprescindível o preenchimento do número do registro no Conselho Regional de Medicina (CRM).
Em nota, a Amil afirmou que oferece aos seus clientes acesso a procedimentos solicitados por médicos brasileiros e estrangeiros com CRM ou "em condições especiais autorizadas pelo Ministério da Saúde", como é o caso do Mais Médicos. A operadora informou, ainda, que "reforçará essa orientação com toda a sua rede credenciada".
A diretriz da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) aos seus associados é a de que a solicitação de um médico intercambista só pode ser aceita na esfera privada se sua assinatura estiver acompanhada da de seu supervisor - médico brasileiro com registro no CRM. Para a entidade, o registro provisório permite que um estrangeiro exerça a medicina no Brasil "exclusivamente no âmbito público".
Esse não é, porém, o entendimento do Ministério da Saúde, segundo o qual o RMS tem os mesmos moldes do CRM, habilitando o intercambista a "expedir atestados, requisitar exames, prescrever medicamentos e realizar laudos, obedecendo à mesma legislação aplicada aos demais médicos que atuam no Brasil". Não aceitar documento emitido por médicos do Mais Médicos, portanto, "constitui uma ilegalidade punível na forma da lei".
A Abramge afirmou desconhecer negativas de cobertura de exames assinados por intercambistas do Mais Médicos, mas destacou que "a operadora não pode atender a solicitações enviadas por médicos estrangeiros que não estejam regularizados no CRM, para não incorrer no risco de prestar um serviço doloso ao paciente". Para que um diploma estrangeiro de médico seja reconhecido no Brasil, tornando o profissional apto a se registrar no Conselho, é preciso que ele preste o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira (Revalida). O programa Mais Médicos, no entanto, não tem o Revalida como requisito para a admissão de seus profissionais.
Das quatro reclamações recebidas pela ANS, três foram resolvidas por meio de Notificação de Intermediação Preliminar (NIP), isto é, sem necessidade de aplicar penalidades. Na primeira, a operadora atendeu à solicitação dentro do prazo; na segunda, o plano de saúde ressarciu o cliente pelos valores gastos com os procedimentos prescritos pelo médico estrangeiro; no último caso, o paciente não respondeu se a situação foi regularizada, mas, caso deseje, poderá reabrir a denúncia a qualquer tempo.
Já a reclamação não solucionada pela operadora, registrada em maio de 2014, implicou em penalização da empresa por violar a Lei dos Planos de Saúde, editada em 1998.
Foi aplicada apenas uma "sanção de advertência", já que a paciente acabou encaminhada a um médico credenciado, livrando o convênio do pagamento de multa pecuniária.
A obrigatoriedade das operadoras cobrirem requisições assinadas por profissionais credenciados ao Mais Médicos está ancorada em um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que prevê aos intercambistas habilitação legal para exercer todas as suas atividades médicas. Dessa forma, quaisquer atestados, exames ou receituários carimbados por eles têm "plena validade jurídica", sem a necessidade de que seu supervisor os subscreva.
O parecer foi elaborado depois que uma clínica particular de Minas Gerais recusou-se, em 2014, a realizar uma ecografia prescrita a uma paciente gestante por médica cubana cooperada do programa. Ministério da Saúde e AGU moveram ação contra a clínica e obtiveram decisão favorável da 1ª Vara de Uberlândia.
Na ocasião, o juiz federal Bruno Vasconcelos determinou que a clínica realizasse todos os exames de sua competência, sob pena de multa diária de R$ 15 mil em caso de descumprimento. "Não há motivos para discriminação aos médicos estrangeiros participantes do Mais Médicos, já que sua atuação encontra-se legalmente respaldada", escreveu o magistrado, na decisão.