A sucessão de casos de febre amarela expôs a críticas a agilidade e a eficácia da reação do país ao vírus. Entre os erros apontados por especialistas estão problemas de planejamento, tímida vigilância da cobertura vacinal e falta de senso de urgência diante de evidências de que o vírus se aproximava da região mais populosa do Brasil.
Segundo o Ministério da Saúde, desde julho de 2017 foram confirmados 130 casos de febre amarela no país. Na contagem do governo Geraldo Alckmin (PSDB), são 134 só em cidades paulistas desde janeiro de 2017, com 52 mortes. No Rio, são 26 pessoas infectadas só neste ano.
As capitais dos dois Estados não têm casos humanos autóctones da doença, só de pessoas infectadas fora. A preocupação, porém, é agravada porque elas não estavam na área de vacinação recomendada pelo ministério e, portanto, têm elevado contingente desprotegido.
No interior de São Paulo e região metropolitana, nove em cada dez casos da doença ocorreram em locais fora do mapa de recomendação de vacina além da capital, não há casos humanos no litoral.
Diante do estoque limitado de vacinas e para conter o avanço do vírus, uma estratégia de bloqueio foi adotada neste mês, usando doses fracionadas, com um quinto do princípio ativo, em 77 cidades da Bahia, Rio e São Paulo.
Se a estratégia agora está perto de um consenso, a ocasião em que ela foi adotada é motivo de controvérsia.
Quando, em abril do ano passado, o ministro Ricardo Barros (Saúde) disse que o fracionamento estava descartado para aquele momento, São Paulo já havia registrado havia dois meses uma morte de macaco pela doença em São Roque, a 66 km da capital.
Em julho, já se sabia que o vírus, na época de maior circulação (de janeiro a maio), avançava mais de 2 km por dia, transmitido por mosquitos em diferentes fragmentos de mata. Na baixa temporada, a velocidade caía a 0,5 km.
Nos bastidores, técnicos da Saúde afirmam que já havia rumores de mortes de macacos em cidades como Mairiporã antes dos primeiros registros oficiais, em 2017.
Ainda mais antigo que isso, porém, é o conhecimento sobre o avanço territorial do vírus do Norte e Centro-Oeste em direção ao Sudeste, lembra Maurício Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Prova disso é a ampliação gradual dos mapas de recomendação de vacinação desde 1997.
O problema, afirma ele, é que esse mapa, nos dois últimos anos, não foi atualizado com a rapidez necessária, à medida em que casos na região de Campinas e Jundiaí, por exemplo, foram registrados.
“A cidade de São Paulo é cercada de mata por todos os lados. Você acha que o vírus ia chegar em Campinas e Jundiaí e não em São Paulo? Teria que ter muita boa vontade e colaboração do vírus.”
Para ele, a vacinação nos Estados de São Paulo e do Rio, mesmo que fracionada, deveria ter sido iniciada no ano passado. “Isso se o ministério tivesse vacina suficiente, o que não sabemos.”
O ministro da Saúde diz que há vacina para toda a população, mas não revela qual é o estoque – alega que se trata de “dado estratégico”.
O Instituto de Bio-Manguinhos afirma que, neste ano, serão produzidas 48,3 milhões de doses até dezembro. Com o fracionamento, o número pode ser multiplicado por até cinco. Agora, o laboratório corre para antecipar a produção – ampliar é improvável.
O infectologista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses, também avalia que o fracionamento deveria ter sido adotado antes. “Melhor a fracionada que nada, mas, para isso, essa estratégia deveria ter sido discutida avaliando a capacidade de produção e de estoque das vacinas. Isso não ocorreu de forma transparente.”
MINAS
Parte desse estoque foi usada por cidades de Minas Gerais, que já estava desde 2008 na área de vacinação, mas chegou a 2016 com só 57,5% da população imunizada. O esperado seria 95%.
Com isso, o Estado ficou no centro do maior surto da doença no país desde os anos 1980. Em 2018, cidades mineiras voltam a registrar casos.
“As pessoas não buscaram os postos no período intersazonal (maio a dezembro). Hoje, eu acho que deveria ter sido feita campanha com foco nos adultos para eles irem se vacinar”, diz a presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Isabella Ballalai.
Ela afirma que uma informação crucial para o fracionamento não ter sido adotado antes é que, até o fim de 2017, ainda se acreditava que a dose reduzida tinha só um ano de eficácia. Foi em meados de dezembro que um estudo preliminar mostrou que a duração era de até oito anos.
“Íamos fazer uma campanha para ter que repetir no ano seguinte?”, diz.
Se há divergências sobre parte das decisões tomadas no passado, ela admite que, com base no que se sabe hoje, talvez realmente fosse melhor tomar outro caminho.
“Eu acho que a gente não acreditou que o perigo era tão grande”, afirma Ballalai.
OUTRO LADO
O ministro da Saúde Ricardo Barros afirma que não era possível “adivinhar” as áreas por onde o vírus da febre amarela circularia.
Segundo ele, o mapa de vacinação não foi expandido para o país todo por causa dos riscos de efeitos adversos graves da vacina. “Não há razão para colocar as pessoas em risco sem necessidade.”
Ele diz que a pasta tomou providências para que fosse acelerado o diagnóstico laboratorial de macacos pela doença – principal critério, ao lado de casos humanos, para a definição dos mapas de imunização.
Ressaltou também que o número de casos registrados de julho do ano passado a janeiro deste ano é menor do que o do mesmo período de 2016/2017 – 130 contra 381.
Por fim, voltou a declarar que, se for necessário, há estoque para vacinar todas as pessoas ainda não imunizadas no país – ele não revela o número de doses atualmente disponíveis.
Segundo o ministro, o fracionamento não foi adotado em abril de 2017 porque, naquele momento, ainda haveria condições de imunizar o país todo com doses plenas.
E, como mostrou a Folha no sábado (27), ele justificou não ter tomado a medida em outubro, quando um macaco do Horto Florestal de São Paulo foi diagnosticado com o vírus, sob o argumento de que o Estado não pediu as vacinas fracionadas.
Diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo, ligado à Secretaria Estadual da Saúde, Regiane de Paula disse que, naquele momento, o Estado trabalhava com a informação de que haveria doses plenas de vacina.
Ela afirma que São Paulo tanto se preparou para a febre amarela que, em meados de 2017, já havia pedido doses para imunizar a população de todas os municípios paulistas até o fim deste ano – mas o ministério ficou de avaliar.
Ela explica que, com base no trabalho de vigilância e no mapeamento dos corredores ecológicos por onde vírus circulava, foi possível se antecipar à chegada da doença em diversos locais. Com isso, diversas cidades foram alvos de campanha de vacinação antes do registro de qualquer morte de animal pela doença.
Um exemplo é a capital paulista, em que a imunização começou no distrito de Anhanguera no dia 16 de setembro de 2017 – o macaco infectado no Horto viria a ser diagnosticado um mês depois.
Outro exemplo citado por ela é o de Mairiporã, epicentro dos casos atuais, em que as doses começaram a ser aplicadas em agosto, dois meses antes das primeiras mortes de animais infectados.
Ela afirma ainda que a primeira notificação oficial de óbito de animal só foi feita em 21 de outubro, e que cabe aos municípios a vigilância de campo. Sobre o caso de São Roque, diz que expedições em diversas regiões de mata do Estado foram feitas após o acontecimento para detectar por onde o vírus poderia estar circulando.
O governo de Minas Gerais afirma que, desde que o Estado entrou na área de vacinação, a imunização foi incorporada à rotina de vacinação dos postos de saúde, o que se reflete nos índices quase universais de imunização de crianças de até dez anos.
“O público não vacinado corresponde exatamente à faixa de adultos que, durante o período da infância (quando há maior frequência aos postos para as campanhas de vacinação), não tinham a obrigatoriedade de vacinar contra febre amarela”, diz a nota enviada pela gestão do governador Fernando Pimentel (PT).
A secretaria da Saúde do Estado afirma ainda que mortes de macacos sempre foram investigadas, mas que, como não houve “com relevância” casos humanos de 2008 até o surto de 2016/2017, só se fazia a vacinação de rotina.
“A partir do momento em que houve o registro de casos humanos, a estratégia foi adequada, conforme a situação, incluindo a vacinação casa a casa, com conferência do cartão de vacina.”
Para a secretaria, a inexistência de casos nos locais do surto do ano passado mostra que a estratégia adotada nessas áreas foi correta.
Hoje, segundo a pasta, a cobertura vacinal está em 82,2%.