Em meio a surtos de febre amarela, o governo federal não só não avançou, como reduziu em 33%, no ano passado, os repasses para ações voltadas a situações de emergências epidemiológicas. O investimento nessas atividades em relação a 2016 (incluindo construção, modernização e aquisição de equipamentos para centros de controle, vigilância e prevenção de zoonoses) caiu de cerca de R$ 30 milhões para R$ 20 milhões.
O levantamento foi feito pelo jornal O Globo com base no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo, e os valores foram corrigidos pelo IPCA de 2017. No mesmo período em que a verba de prevenção minguou, o país registrou quase 800 casos da doença que ameaça, principalmente, Rio de Janeiro, São Paulo — ontem, após a morte de duas pessoas, foi decretado estado de calamidade na cidade de Mariporã — e Minas Gerais. Ontem, subiu para cinco o total de casos de febre amarela confirmados no Rio (dois infectados em Teresópolis, sendo um óbito; e três em Valença, dos quais dois morreram).
Os recursos estão listados na rubrica identificada como Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica e Controle de Doenças. Em uma outra rubrica, que destina valores para o programa de apoio a estados e municípios na prevenção de patologias como dengue, tuberculose e doenças sexualmente transmissíveis, a queda no orçamento foi de 35% de 2016 para 2017. Os repasses do governo federal para o Fortalecimento do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde caíram de aproximadamente R$ 313 milhões para R$ 208 milhões.
A redução no orçamento acontece num momento crítico, segundo o próprio Ministério da Saúde. Em um relatório sobre a febre amarela divulgado no ano passado, o órgão informou que o país passava pelo maior surto da história recente da doença, “colocando novamente à prova a capacidade de resposta do serviço de saúde pública brasileiro”. Os números não deixam dúvidas: entre dezembro de 2016 e julho de 2017, foram confirmados 777 casos, com 261 óbitos. A Região Sudeste registrou a maioria das mortes: 152 em Minas Gerais, 83 no Espírito Santo, dez em São Paulo e oito no Rio de Janeiro. Desde o ano passado, o Rio teve 12 mortes.
Os incentivos do governo federal para a Vigilância em Saúde de estados e municípios também apresentou redução entre 2016 e 2017: a queda nas verbas foi de 2,4%. Essa ação visa a promover, entre outras atividades, o controle ambiental e imunizações. O valor pago caiu de R$ 1,82 bilhão para R$ 1,78 bilhão. No Rio de Janeiro, a diminuição foi de 11%: de R$ 154,3 milhões para R$ 136,6 milhões. Em São Paulo, a queda foi de 13% (R$ 273,7 milhões para R$ 238 milhões); em Minas Gerais e no Espírito Santo, de 5% (R$ 220,8 milhões para R$ 209,5 milhões) e 4% (R$ 41 milhões para R$ 39,5 milhões), respectivamente. Uma única ação federal, voltada para aquisição e distribuição de remédios e vacinas, teve aumento de recursos, de 8% (de R$ 2,8 milhões para R$ 3 milhões). Os dados, que também foram corrigidos pelo IPCA de 2017, podem ser consultados no Portal Transparência Brasil.
Uma pesquisa realizada em maio do ano passado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV) já chamava a atenção para uma redução, de 18%, nos repasses do governo federal para ações de vigilância epidemiológica. Ao comparar os três primeiros meses de 2016 com o mesmo período de 2017, o levantamento constatou que o total (pago) destinado a essas atividades, corrigido pela inflação, caiu de R$ 530,88 milhões para R$ 436,24 milhões.
Professora da UFRJ e integrante da Comissão de Políticas de Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Lígia Bahia classificou como “uma irresponsabilidade” a redução de recursos da União para o controle de arboviroses e observou que o quadro atual era previsível.
"Não faltaram alertas sobre o recrudescimento da febre amarela. É um paradoxo cruel o Brasil ser produtor da vacina, ter centros de pesquisa reconhecidamente excelentes e a população continuar exposta a doenças evitáveis por imunização" disse Lígia.
Ministério diz que verba não caiu
O Ministério da Saúde negou a queda de repasses, e afirmou que os valores empenhados — aqueles reservados para as atividades, mas não liberados — são bem maiores. A pasta justifica que o montante é repassado conforme “o andamento das fases de cada estudo e necessidade de investimentos”. Um pagamento, por exemplo, pode ser feito somente no ano seguinte, destacou o órgão.
No levantamento feito pela FGV, o economista Wagner Oliveira só considerou os valores efetivamente pagos.
"O empenho cria uma obrigação, mas não implica em contrapartida real, pois pode ser cancelado. Usar o valor efetivamente pago se aproxima mais do que está acontecendo de fato no país", argumentou Oliveira.
Além de defender a maneira como faz os repasses, o Ministério da Saúde destacou que “os investimentos anteriores ao surto de febre amarela permitiram o preparo do sistema para respostas da rede pública às necessidades da população”.
Procuradas para comentar o assunto, as secretarias estaduais de Saúde do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e do Espírito Santo negaram que a redução dos recursos federais tenha prejudicado as ações de combate à febre amarela. A de São Paulo não respondeu aos questionamentos enviados por e-mail pelo jornal O Globo.