Um sistema de saúde que diminua as diferenças de 27 países europeus, ao mesmo tempo em que altere o paradigma da prática médica, é o projeto liderado pelo doutor Felix Unger, cirurgião cardíaco que preside o Instituto Europeu de Saúde, da Academia Europeia de Ciências e Artes. As ideias do médico foram apresentadas no ano passado à Comissão Europeia, no relatório "Visão para a Europa: Saúde Para Todos".
Na proposta de Unger, a assistência em saúde é entendida como um mercado, que deixa claros os preços dos serviços e o financiamento dos sistemas. No modelo atual, em que cada país segue isoladamente seu próprio sistema de saúde, diz o cardiologista, ninguém sabe ao certo qual é o preço de cada procedimento.
Para o Brasil, território ocupado de maneira desigual, com vastas áreas pouco habitadas ou grandes conglomerados urbanos, Unger sugere a adoção de unidades de saúde de pequeno porte, adaptadas do modelo do extinto bloco soviético. A isso se somaria a medicina a distância e uma rede de transportes para pacientes mais graves.
Segundo o médico, que participou do seminário "Saúde: desafios de hoje e amanhã", promovido pelo Valor, suas propostas devem ser entendidas à luz de um novo tipo de medicina, que consiga conjugar, por um lado, o uso intensivo de tecnologia de ponta e, por outro, uma devoção absoluta ao paciente.
Valor: Um tema central no seminário é um velho conhecido dos europeus: a população que, ao envelhecer, demanda mais e cada vez mais complexos serviços de saúde. Que lições o Brasil pode aprender da experiência europeia?
Felix Unger: A Europa também tem enormes disparidades. Existem partes do continente com população muito densa e partes com população muito esparsa. Por isso, começamos a desenvolver diferentes formas de serviços de saúde. É uma adaptação. A primeira preocupação é atender a pessoa, com suas necessidades. Em segundo lugar, temos de pensar em uma nova medicina, que seja integrativa, ampla. Essa medicina terá que abarcar desde a prevenção até a reabilitação, passando pelos cuidados de longo prazo, tudo no mesmo sistema. A partir daí é que poderemos cuidar do enorme desafio que é a população que vai envelhecendo.
Valor: Qual a perspectiva de adotar-se o modelo integrado na Europa?
Unger: O principal problema é que temos de lidar com 27 sistemas de saúde diferentes. Esses Estados ainda tratam a saúde de modo auxiliar, então precisamos gerar a consciência da medicina integrada e superar as fronteiras entre os países. Temos de ter, na Europa como um todo, saúde para todos. A principal ação para atingir esse modelo é enxergar a medicina como um mercado, de forma a criar regulamentações que sustentem seu funcionamento.
Valor: Como o senhor vê a articulação entre a saúde pública e a privada?
Unger: Na Europa existem três sistemas. Um tema capital é o financiamento. Na Europa Central, o sistema de financiamento remete a [Otto von] Bismarck [chanceler da Prússia imperial no século XIX], e a combinação é muito boa entre os hospitais públicos, os privados e os centros de tratamento menores. Na Europa como um todo, precisamos desenvolver um sistema de financiamento novo.
Valor: Como seria esse sistema?
Unger: Quando enxergamos a medicina como um mercado, temos de descrever a cada momento o que estamos fazendo. Por exemplo, ao fazer uma cirurgia de coração aberto, cobra-se da seguradora algo como € 25 mil. E então pode-se competir com outros hospitais. Na Europa, ninguém sabe ao certo o preço exato de nossos procedimentos médicos.
Valor: Por que o preço é tão difícil de determinar?
Unger: Isso nunca foi um tema no debate político. Hospitais e seguradoras sempre foram pagos de qualquer maneira, pelo contribuinte e pelos planos privados.
Valor: E os demais sistemas?
Unger: O sistema de Bismarck está em seis países do centro do continente, que estão se saindo bastante bem. Em seguida, há o sistema Beveridge, introduzido nos anos 1950, na Inglaterra [a partir das ideias do economista inglês William Beveridge]. É o sistema do resto da Europa ocidental e da Escandinávia. Os escandinavos têm ido muito bem, mas a Inglaterra, não. Eles têm grandes problemas com listas de espera. Para cirurgia cardíaca, na Irlanda, chega a 18 meses, e o risco de morrer nesse período é maior do que na operação. O terceiro sistema foi herdado do sistema soviético nos países do Leste europeu. É um sistema planejado, que não está se saindo lá muito bem.
Valor: Como isso se adaptaria ao Brasil?
Unger: Pelo que observei, o que parece uma boa ideia para o Brasil seria criar mais dos pequenos centros médicos nas áreas com baixa densidade de população. Penso na Amazônia, por exemplo. Também recomendei isso para a Noruega e a Romênia. Centros médicos menores são a forma mais barata e eficiente. Isso se articularia com a medicina a distância e a disponibilização de meios de transporte. Por outro lado, o Brasil tem uma medicina muito boa na ponta superior. A questão é expandir todos os lados do sistema e investir nos centros médicos. Sabe de onde vêm os centros médicos? Dos antigos países comunistas!
Valor: Que mecanismos garantiriam que mesmo os mais pobres teriam os tratamentos mais avançados?
Unger: Na Europa, quase toda a população tem plano de saúde. A exceção são os muito pobres, por motivos óbvios, e os muito ricos. Eles não veem sentido em pagar a apólice, preferem tirar do próprio bolso se precisarem. Praticamente todos na Europa Central conseguem fazer tratamentos avançados, porque são protegidos pela seguridade social, paga pelo contribuinte, a principal fonte de recursos para a saúde na Europa.
Valor: A pesquisa em medicina é cada vez mais cara. Como financiá-la?
Unger: Temos capacidade e financiamento insuficientes para estar na fronteira da pesquisa em medicina. Há boas iniciativas na Alemanha, mas não vejo a pesquisa sendo feita na mesma intensidade que nos EUA. As disparidades na Europa são muito grandes. Na média, algo como 10% do PIB é gasto com saúde, mas isso varia de 16% na Áustria a 5% na Bulgária. Isso provoca diferenças no tipo de pesquisa que é feita, favorecendo a pesquisa de doenças que acometem ricos. Um dos grandes problemas é o financiamento da pesquisa e da medicina em cada país.
Valor: Sobre os EUA, como o senhor interpreta a reforma da saúde feita lá há alguns anos?
Unger: Quanto à medicina feita no topo, os EUA são os líderes. Quando se trata do sistema geral de saúde, os EUA têm uma deficiência gigantesca. Não cobrem nem tratam todos os pacientes.
Valor: O senhor ressalta a importância das partes da medicina que não são simplesmente cura. Como calculá-las?
Unger: A grande diferença das iniciativas de prevenção é que são, em grande medida, atitudes que têm de ser tomadas pelo próprio paciente, por conta própria, em seu próprio interesse. Em seguida, existem as atitudes preventivas que incluem alguma assistência médica, como acompanhar o colesterol, fazer exames regulares de sangue e assim por diante. Isso tudo é assunto de saúde pública.
Valor: O senhor chega a falar em novo paradigma da medicina. O que muda?
Unger: Há 270 anos, o filósofo La Mettrie publicou "O Homem-Máquina". A medicina que começou a se desenvolver nessa época se acostumou a olhar o corpo como uma máquina. Esquecemos do espírito, da alma. Com essa medicina, atingimos um grande sucesso. Mas também tivemos problemas, porque só tratamos parte do paciente. Temos de lançar um olhar amplo para o ser humano, entidade composta de corpo, alma, espírito. A saúde não é senão o momento em que essas partes estão em equilíbrio. Quando algo sai do lugar, há sofrimento. Tanto quanto ter uma perna quebrada afeta seus pensamentos, o coração partido ou o espírito deprimido podem provocar problemas no estômago. A depressão pode matar. Ao mesmo tempo, temos de avançar na medicina de alta tecnologia. Em todas as partes. E também a educação, que é extremamente necessária, antes e depois do tratamento. A parte mais fácil e barata é a devoção ao paciente. Tratá-lo com decência. Temos de fazer medicina de alta tecnologia, pensando no paciente.
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