Pela primeira vez, a FDA (agência americana de regulação de remédios) aprovou uma pílula digital –um medicamento atrelado a um sensor que pode avisar aos médicos se e quando os pacientes tomam seus medicamentos.
A aprovação, anunciada na segunda-feira (13), marca um avanço significativo no crescente campo de dispositivos digitais criados para monitorar o consumo de remédios e resolver o caro e duradouro problema de milhões de pacientes que não tomam os remédios que foram receitados por médicos.
Especialistas estimam que a chamada "não adesão" aos medicamentos gera um custo de cerca de US$ 100 bilhões por ano –na maior parte porque os pacientes ficam mais doentes e precisam de tratamento adicional ou hospitalização.
"Quando os pacientes não aderem ao estilo de vida ou medicação que foram receitados a eles, há consequências negativas significativas para o paciente e muito onerosas", disse William Shrank, diretor médico da divisão de planos de saúde do centro médico da Universidade de Pittsburgh.
Ameet Sarpatwari, um instrutor de medicina da faculdade de medicina da Universidade Harvard, disse que a pílula digital "tem potencial para melhorar a saúde pública", especialmente para os pacientes que querem tomar a medicação, mas esquecem de fazê-lo.
Ele acrescenta, no entanto, que "se usada de maneira inadequada, poderia promover mais desconfianças em vez de confiança"
Pacientes que concordam em tomar a medicação digital, uma versão do antipsicótico Abilify, podem assinar formulários de consentimento permitindo que seus médicos e até quatro outras pessoas, incluindo membros da família, recebam dados eletrônicos mostrando a data e a hora que as pílulas são ingeridas.
Um aplicativo de smartphone permite que os pacientes bloqueiem os destinatários sempre que mudarem de ideia. Embora voluntária, a tecnologia ainda pode levantar questões sobre privacidade e se os pacientes podem se sentir pressionados a tomar remédios de uma forma que seus médicos possam monitorá-los.
Peter Kramer, psiquiatra auto do livro "Listening to Prozac" (escutando o Prozac, em tradução livre) levanta a questão da abordagem "dedo-duro" do medicamento. "A 'droga digital' soa como uma ferramenta potencialmente coercitiva", diz.
Outras empresas estão desenvolvendo tecnologias de medicação digital, incluindo outro sensor para ser ingerido e uma forma de reconhecimento visual capaz de confirmar se um paciente colocou uma pílula na língua e a engoliu.
Nem todas elas precisarão de regulamentação, e algumas já estão sendo usadas ou testadas em pacientes com problemas cardíacos, AVC, HIV, diabetes e outras condições.
A tecnologia poderia ser usada para monitorar se pacientes pós-operatórios tomaram uma grande quantidade de opioides ou se os participantes de testes clínicos receberam corretamente drogas testadas.
As seguradoras podem, eventualmente, dar aos pacientes incentivos para usá-la, como descontos, afirma Eric Topol, diretor do Instituto Scripps Translational Science, acrescentando que questões éticas poderiam surgir se a tecnologia fosse "tão incentivada a ponto de parecer algo coagido".
Outro uso polêmico pode exigir a medicina digital como uma condição para a liberdade condicional ou a liberação de pacientes de instalações psiquiátricas.
Abilify é uma escolha indiscutivelmente incomum para o primeiro medicamento integrado ao sensor. É prescrito para pessoas com esquizofrenia, transtorno bipolar e, em conjunto com um antidepressivo, para transtornos depressivos maiores.
Muitos pacientes com essas condições não tomam medicação regularmente, muitas vezes com graves consequências.
Mas os sintomas da esquizofrenia e distúrbios relacionados podem incluir paranoia e delírios, por isso alguns médicos e pacientes se perguntam o quanto o Abilify digital será aceito.
"Muitos desses pacientes não tomam medicamentos porque não gostam de efeitos colaterais, ou não acham que têm uma doença, ou porque se tornam paranoicos quanto ao médico ou suas intenções", disse Paul Appelbaum, diretor de direito, ética e psiquiatria no departamento de psiquiatria da Universidade de Columbia.
"Dá para imaginar que, seja em psiquiatria ou em outro área, medicamentos para praticamente qualquer outra condição seriam um lugar melhor para começar", afirmou Appelbaum.
A droga recentemente aprovada, chamada Abilify MyCite, é uma colaboração entre a fabricante da Abilify, Otsuka, e a Proteus Digital Health, uma empresa californiana que criou o sensor.
O sensor, que contém cobre, magnésio e silício (ingredientes seguros encontrados nos alimentos), gera um sinal elétrico quando atingido pelo líquido do estômago, como uma bateria de batata, disse Andrew Thompson, presidente e diretor executivo da Proteus.
Após vários minutos, o sinal é detectado por um objeto parecido com um Band-Aid que deve ser usado na caixa torácica esquerda e substituído após sete dias, disse Andrew Wright, vice-presidente de medicina digital da Otsuka America.
O adesivo envia por bluetooth para um aplicativo de celular a data e hora da ingestão do comprimido e o nível de atividade do paciente.
O aplicativo permite que os pacientes adicionem seu humor e quantas horas de descanso tiveram e, em seguida, transmite a informação para um banco de dados, ao qual têm acesso os médicos e outras pessoas que receberam autorização.
Otsuka não determinou um preço para a Abilify MyCite, que será lançado no próximo ano, inicialmente para um número limitado de planos de saúde, disse Wright. O valor, e se as pílulas digitais melhoram a adesão, definirão a amplitude de uso.
A questões que envolvem compliance também permanecem abertas.
Jeffrey Lieberman, presidente da área de psiquiatria da Universidade de Columbia e do Hospital Presbiteriano de Nova York, disse que muitos psiquiatras gostariam de testar o Abilify digital, especialmente para pacientes que vivenciaram seu primeiro episódio psicótico recentemente e correm o risco de parar a medicação depois de se sentirem melhores.
Contudo, ele afirma que o produto só foi aprovado para acompanhar as doses de medicação tomadas e que ainda não há informações se a pílula digital aumenta a adesão ao tratamento. "Será que isso irá ajudar as pessoas a ter menos recidivas, menos hospitalizações desnecessárias, e melhoras na vida social?", disse.
"Há uma ironia no produto ser destinado a pacientes com problemas mentais que têm delírios. É como um Big Brother biomédico", afirma.
Abilify, uma droga amplamente utilizada, perdeu a patente recentemente e outras farmacêuticas podem vender sua forma genérica, a aripiprazole. Contudo, a Otsuka tem os direitos exclusivos sobre o sensor do Proteus, disse Robert McQuade, vice-presidente executivo da Otsuka.
"Não é destinado a todos os pacientes com esquizofrenia, grandes tipos de transtornos depressivos e bipolaridade", acrescentou. "O médico deve ter certeza de que o paciente pode gerenciar o sistema."
McQuade afirmou que "ainda não há dados sobre a possibilidade de aumento de adesão ao tratamento", mas a questão será estudada após o início das vendas.
A Proteus passou anos na busca de colocar seu sensor no mercado, arrecadando cerca de US$ 400 milhões de investidores, incluindo Novartis e Medtronic, disse Thompson.
Em 2016, o sensor em cápsula começou a ser utilizado fora dos testes clínicos, mas o uso comercial ainda é limitado, disse Thompson.
Nove planos de saúde de seis estados dos Estados Unidos começaram a receitá-lo com medicamentos para condições como hipertensão e hepatite C, disse a empresa, acrescentando que melhorou a adesão em pacientes com hipertensão fora de controle entre outros.
AiCure, um sistema de reconhecimento visual para smartphone no qual os pacientes registram a ingestão de remédios, obteve sucesso entre pacientes com tuberculose tratados pelo Departamento de Saúde do Condado de Los Angeles e está funcionando com pacientes semelhantes em Illinois, disse Adam Hanina, presidente-executivo da AiCure.
Ele disse que a AiCure também mostrou resultados promissores com outras condições, incluindo pacientes com esquizofrenia, cuja ingestão de comprimidos exigem o acompanhamento direto.
Uma empresa da Flórida, a etectRx, criou outro sensor de ingestão, o ID-Cap, que está sendo testado com opioides, remédios para HIV, e outras drogas.
Feito de magnésio e cloreto de prata, o ID-Cap é colocado nas cápsulas, o que evita o uso de adesivos. O sensor gera "um sinal de rádio de baixo poder que pode ser captado por uma pequena antena nas redondezas", disse Harry Travis, presidente da etectRx, segundo o qual a companhia pretende conseguir a autorização da FDA no próximo ano.
O sinal é detectado por um leitor usado ao redor do pescoço, mas a etectRx tem planos para colocar o aparelho em pulseiras ou capas de celulares.
"As pessoas me perguntam com frequência se o governo irá usar esses dados ou se eu posso rastrear o paciente", diz Eric Buffkin, vice-presidente da etectRx. "Honestamente, há um fator bizarro nessa ideia de medicina de rastreamento."
"Costumo falar que essa tecnologia não vai fazer o paciente abrir a boca e tomar o remédio. Se a pessoa é fundamentalmente contra a ideia de compartilhar informação, é melhor dizer 'Não, obrigado'", afirmou Buffkin.
Levando em conta as preocupações com privacidade e coerção, a Otsuka contratou diversos bioéticos. Entre eles, I. Glenn Cohen, professor de direito da Universidade Havard, disse que uma das garantias adotadas foi a possibilidade dos pacientes interromperem médicos e outras pessoas de receberem as informações clínicas.
Questionado se o mecanismo poderia ser usado para casos de liberdade condicional ou hospitalização involuntária, membros da Otsuka disseram que essa não é a intenção ou expectativa, em parte porque a Abilify MyCite só funciona se os pacientes querem usar o adesivo e o aplicativo.
Como os pacientes verão o Abilify MyCite é mais uma questão.Tommy, 50, morador do Queens em Nova York, toma Abilify para transtorno esquizoafetivo e participou em um teste clínico para o Abilify digital.
Tommy, que omitiu seu sobrenome para proteger sua privacidade, encontro, encontrou pequenos problemas, e disse que o adesivo era "um pouco desconfortável" e uma vez causou uma alergia.
Paciente colaborativo, Tommy disse que não precisa de monitoramento. "Faz tempo que não tenho pensamentos paranoicos. Não é como se eu acreditasse que eles são alienígenas do espaço", ele disse. Se lhe oferecessem Abilify digital outra vez, "eu não tomaria de novo", disse.
Mas o método pode ter apelo para pacientes que querem provar sua colaboração, construir confiança com seus psiquiatras, ou que se sentem "paranóicos sobre serem acusados de não tomar seu medicamento".
Steve Colori, 31, de Danvers, Massachussetts, que escreveu suas memórias sobre sua doença, "Experimentando e Superando o Transtorno Esquizoafetivo" (em tradução livre), disse que tomou Abilify anos atrás para sintomas que incluíam crer que "era um messias".
Embora tenha parado de tomar o medicamento alguma vezes, ele consideraria as pílulas digitais "arrogantes, podem bloquear alguém e interromper o progresso na terapia".
William Jiang, 44, um escritor em Manhattan com esquizofrenia, tomou Abilify por 16 anos. Ele disse que tomou medicamentos para evitar a recorrência de episódios de paranoia quando "estava convencido de que todos o queriam matar".
Ele disse que alguns pacientes não colaborativos poderiam tomar o Abilify digital, especialmente para evitar as injeções recomendadas a pacientes que não tomam suas pílulas.
"Eu não gostaria de um sinal elétrico saindo do meu corpo, forte o suficiente para o meu médico poder lê-lo", disse Jiang.
"Mas no momento, ou você toma suas pílulas quando está fora de supervisão, ou toma uma injeção na bunda. Quem quer tomar uma injeção na bunda?"