O decreto 9.175 que altera o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e foi publicado no Diário Oficial da União de hoje facilitará a doação de órgãos no Brasil ao derrubar a exigência do médico especialista em neurologia para diagnóstico de morte encefálica, na opinião do coordenador médico do núcleo de captação de órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein , José Eduardo Afonso Júnior.
A não exigência de um neurologista para diagnosticar a morte encefálica é, segundo o Ministério da Saúde, uma demanda do Conselho Federal de Medicina (CFM) e que já é realidade em alguns Estados, como São Paulo.
No novo texto, o diagnóstico de morte encefálica será confirmado com base nos critérios neurológicos definidos em resolução específica do CFM que, na visão de Afonso Junior, especialista em transplantes de pulmão, são bem rígidos e eficientes.
“O diagnóstico de morte encefálica é muito, muito bem estabelecido no Brasil. Os dados que você precisa ter para permitir que uma pessoa em morte encefálica seja doador são extremamente rigorosos justamente para prevenir casos anedóticos de que o paciente acordou depois de ser diagnosticado com morte encefálica, coisas desse tipo”, exemplifica o médico do Einstein.
Muitas doações de órgãos deixam de ser feitas, segundo o médico, porque é preciso esperar que um neurologista esteja disponível no hospital para fazer o diagnóstico do óbito. “Uma pessoa que está em morte encefálica, se você não for ágil o potencial doador vai ter uma parada cardíaca, e você perde a oportunidade de extrair os órgãos”.
A opinião é compartilhada pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), que também considera a mudança positiva. “O decreto tornou a doação mais exequível, uma vez que aumenta o número de médicos que podem comprovar se há morte encefálica e também permite ao companheiro(a) em uma união estável a autorização para a retirada dos órgãos”, afirma a Secretária Executiva da ABTO, Sueli Benko.
O protocolo para liberar a doação de órgãos, segundo o médico do Einstein, prevê a necessidade de dois testes clínicos feitos por médicos para confirmar que não há nenhum reflexo de vida, além de mais um exame complementar do cérebro, como um eletroencefalograma, por exemplo, ou um ultrassom das artérias cerebrais.
Na visão de Afonso Junior, qualquer médico de se sinta capacitado — um clínico geral, um intensivista da UTI — é capaz de fazer o diagnóstico da morte cerebral. “Em alguns Estados existe a exigência de que seja um neurologista. Em São Paulo não precisa”, explica. O médico detalha que esses critérios são extremamente rígidos na comparação internacional, e que o Brasil é referência na realização de transplantes. “Em outros países já se permite a extração dos órgãos em situações muito menos catastróficas do ponto de vista neurológico do que as do Brasil”, diz.
O especialista vê nisso um aspecto cultural, também decorrente da grande desconfiança que a população tem em relação ao poder público de modo geral, representado nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). O médico, que destaca que a imensa maioria dos doadores vêm justamente dos hospitais públicos, das periferias e de regiões violentas, com mais mortes.
“A chance de um diagnóstico errado de morte encefálica é praticamente zero com os critérios que são hoje estabelecidos no Brasil”, diz, acrescentando que, em casos em que reste qualquer dúvida ou sinal de vida no cérebro, o diagnóstico não é dado. “Disso eu tenho certeza absoluta”, afirma.
Hoje, mesmo antes do decreto, a decisão final sobre a doação de órgãos é da família do doador: mãe, pai, filho ou cônjuge. Não existe o conceito de consentimento presumido: até que a família autorize, ninguém é doador.
“Uma pessoa pode ter manifestado, ter mesmo registrado em cartório a vontade de ser doador. Se um familiar ou cônjuge não autorizar por qualquer motivo, os órgãos não são doados”, diz Afonso Junior.
O decreto assinado hoje também inclui o companheiro como autorizador da doação, Até então, era necessário ser casado oficialmente com o doador para autorizar o transplante. Podem autorizar também o “cônjuge, parente consanguíneo, de maior idade e juridicamente capaz, na linha reta ou colateral, até o segundo grau, e firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte”.
O especialista do Einstein diz que a resistência em doar órgãos no Brasil é cultural, e que é preciso que o sistema de saúde trate melhor os doadores longo da vida, e não só na hora da morte, para que uma relação de mais confiança seja estabelecida.
“É difícil você exigir que alguém que não tem ideia de como funciona o corpo humano entenda que aquela pessoa que está respirando está morta e não vai acordar”, diz. “Temos um sistema público de saúde bom em uns aspectos, mas falho em outros. Uma pessoa que perde um familiar em condições falhas do sistema de saúde, por falta de médicos, de equipamentos... Qual a chance de alguém que sofreu com a ineficiência do sistema aceitar doar?”, diz.
Ele defende que doar órgãos é um ato de confiança e de bondade do doador. “O sistema de transplantes do Brasil é o maior do mundo, é uma referência. O Brasil é muito bom nisso. Mas a questão é cuidar do doador, acolher a família do doador, do rapaz que fugiu da polícia e tomou um tiro na cabeça, por exemplo”, diz.
“O cuidado com o doador tem que evoluir muito, fazer o transplante é fácil. O problema é bem mais primário do que discussões sofisticadas sobre transplante. É o que acontece com o doador até chegar àquele momento”, afirma o médico, que lembra que o país tem filas de espera com mais de 40 mil pacientes que aguardam por órgãos. “É um ato de bondade extrema. Quem doa tem que ser endeusado, porque salva mais vidas que os médicos”.