Uma ferramenta de diagnóstico do câncer idealizada por uma cientista brasileira reduz em 150 vezes o tempo necessário para diferenciar tecidos doentes dos saudáveis com quase 100% de precisão. O método, que em 10 segundos faz essa identificação, foi testado com sucesso em 253 amostras retiradas de pacientes e em animais vivos. De acordo com a química Livia S. Esberlin, principal investigadora do trabalho, publicado na capa da revista Science Translational Medicine, no ano que vem, serão realizados os estudos com humanos na sala de cirurgia, durante procedimento de remoção de tumor, assim como se fez, agora, com roedores. A tecnologia vai ajudar cirurgiões a delimitar a área de resseção de cânceres sólidos, além de reduzir, significativamente, a espera pelo resultado de biópsias.
Nascida em Campinas e graduada na Unicamp, Livia vive nos Estados Unidos há uma década, onde fez doutorado e pós-doutorado. Pesquisadora do Departamento de Química da Universidade do Texas em Austin, ela conta que, desde que começou os estudos de pós-graduação, sonhava em desenvolver um projeto que tivesse aplicação prática na medicina. Como trabalha com espectrômetro de massa, equipamento que identifica as propriedades de moléculas e, portanto, consegue caracterizá-las, a química idealizou um método capaz de reconhecer tecidos doentes no momento em que o cirurgião faz a resseção do câncer. “A maioria das pesquisas com espectrômetro fica no laboratório. Desde o começo, meu interesse era utilizá-lo para resolver um problema real”, revela.
Com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, incluindo engenheiros, a cientista desenvolveu um dispositivo automatizado, descartável e biocompatível que, para realizar o diagnóstico, precisa apenas de uma gota d’água, além do espectrômetro de massa e de um software treinado para reconhecer o câncer. Por enquanto, o sistema consegue caracterizar tumores malignos de mama, pulmão, tireoide e ovário, incluindo seus subtipos, algo fundamental para a orientação do tratamento.
No momento, os cientistas trabalham para ampliar a gama de cânceres sólidos que poderão ser identificados. “A ideia é ajudar o médico a achar a margem cirúrgica”, conta a pesquisadora. Ela lembra que, quando o paciente oncológico é submetido ao procedimento de remoção do câncer, é difícil estabelecer o tamanho exato de tecido que deve ser removido, de forma a retirar toda a parte afetada, sem, contudo, avançar por tecidos saudáveis.
O oncologista Carlos Henrique dos Anjos, da unidade de Brasília do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês, explica como funciona o procedimento padrão. “Quando se opera um câncer, poupar tecido não é prioridade, pois prioridade é remover o câncer. Para alguns órgãos, a retirada de tecido a mais não é problema, caso do intestino, que é muito grande”, exemplifica. “Mas digamos que o cirurgião esteja operando um tumor de mama muito próximo do mamilo. Ele não sabe se o tumor encosta no mamilo. Então, poderá ter de retirar o mamilo, que é uma estrutura de grande importância estética para a paciente”, observa. Por outro lado, caso o cirurgião retire material de menos, a doença não terá sido curada.
Para tomar a decisão, dentro da sala de cirurgia, um patologista faz o exame chamado biópsia de congelação, ou transoperatório. Ou seja, ele examina o tecido no microscópio, ali mesmo. O laudo, que vai guiar o procedimento, sai em cerca de 15 minutos e, dependendo do resultado, o médico tem de continuar operando o paciente ou pode encerrar a cirurgia. Além de não ser um diagnóstico definitivo, a acurácia não é tão alta quanto a obtida pelo método desenvolvido na Universidade do Texas em Austin.
Facilidade
O procedimento proposto pela equipe liderada por Livia S. Esberlin se propõe a resolver todos esses problemas. A facilidade de manuseio do dispositivo chama a atenção: o cirurgião encosta a caneta descartável no tecido e, com o pé, aciona um pedal que vai liberar uma gota d’água. A água absorve as moléculas contidas na superfície e é sugada por um cano de 1,5m a 2m, ligado ao aparelho de espectrometria de massa. Em menos de um segundo, o equipamento revela a estrutura das moléculas. Essa informação é lida por um computador conectado à máquina e, em 10 segundos, o diagnóstico é feito: câncer ou tecido normal.
A cientista brasileira explica que o software é treinado para fazer esse reconhecimento e, para exemplificar, compara-o ao Facebook: da mesma forma que o algoritmo da rede social aprende a reconhecer rostos à medida que são marcados nas fotos, passando, ele mesmo, a dizer quem é quem nas imagens postadas, o programa utilizado pelos pesquisadores da Universidade do Texas em Austin vai sendo instruído para distinguir diversos perfis moleculares. Por isso, embora por enquanto ele esteja restrito a quatro tumores (com os respectivos subtipos), em tese, é capaz de dar o veredito a respeito de qualquer tumor maligno sólido (cânceres de plasma ou sangue, como leucemia, não podem ser identificados pelo método).
Por enquanto, o sistema testou 253 amostras de tecidos humanos — saudáveis e doentes —, além de ter sido utilizado em roedores vivos, durante a cirurgia. A precisão foi de 96,6%. Segundo Livia S. Esberlin, no ano que vem, devem ser realizados os primeiros procedimentos com pacientes na sala de operação, tal como o método foi idealizado.
Para o oncologista do Grupo Oncologia D’Or Carlos Gil Ferreira, coordenador da Rede Nacional de Pesquisa Clínica de Câncer, o trabalho publicado na Science Translational Medicine pode ser considerado um grande avanço. Embora destaque que, antes de ser incorporado à prática clínica, ainda serão necessários alguns anos de pesquisa, ele observa que o resultado obtido é um marco. “Na minha visão, o futuro da patologia muda a partir desse artigo”, considera. “É um trabalho de altíssimo nível. A comunidade científica talvez esperasse esse resultado somente para daqui a três anos. Agora, o desafio é trazê-lo para a prática”, diz.
Ferreira calcula em cinco anos o tempo para que a tecnologia esteja disponível nos centros de excelência norte-americanos. Além da necessidade de se replicar os resultados em outros centros médicos, o oncologista destaca a diminuição do tamanho do espectrômetro e a redução dos valores desse aparelho, ainda muito caro, para a transladação da pesquisa para a prática.