Responsáveis por 45% dos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), os quase quatro mil hospitais filantrópicos brasileiros, incluindo as 2.100 Santas Casas de Misericórdia, devem fechar este ano com uma dívida recorde de R$ 15 bilhões. É um rombo que vem crescendo num ritmo assustador nos últimos anos - era de R$ 1,8 bilhão em 2005 e de R$ 5,9 bilhões em 2009 - e que já está pondo em risco a prestação de serviços médicos à população mais carente, sobretudo nos pequenos municípios, onde essas unidades hospitalares são muitas vezes a única opção dos moradores.
O diagnóstico desse quadro preocupante, detalhado em relatório da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal, foi muito claro: não se trata mais de um problema crônico, a ser resolvido, como de costume, com doações de particulares ou verbas oficiais de emergência, mas de uma anemia financeira aguda que ameaça seriamente um dos pilares do sistema de saúde brasileiro.
"A conta é muito simples: de cada R$ 100 gastos pelos hospitais filantrópicos no atendimento aos pacientes, o SUS só está reembolsando R$ 65. Enquanto essa distorção não for corrigida, os hospitais serão obrigados a buscar recursos em bancos para financiar uma dívida que não para de crescer", resume o deputado Antonio Brito (PTB-BA), relator do documento divulgado pela Câmara em junho do ano passado, que desde então tem servido como principal subsídio para o debate e a busca de soluções para essa crise hospitalar.
"Nosso diálogo com o ministro da Saúde está muito bom, ele compreende a gravidade da situação, mas ainda não conseguimos sensibilizar a área econômica do governo", afirma Brito, que lidera a Frente Parlamentar de Apoio às Santas Casas e durante seis anos, de 2005 a 2011, presidiu a Confederação de Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB). Enquanto as medidas concretas não chegam, ele comemora, porém, alguns avanços conseguidos nos últimos meses.
O mais recente deles foi um acordo com as lideranças do governo na Câmara para a criação de uma linha especial do Programa de Refinanciamento Fiscal (Refis) para as Santas Casas e demais hospitais sem fins lucrativos, com prazo de pagamento de 30 anos e abatimento de 60% nas multas e de 20% nos juros cobrados usualmente pela Receita. O acordo foi construído com a substituição de uma emenda de autoria do deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG), que propunha esse mesmo benefício, por uma Medida Provisória, aprovada em 21 de maio.
A expectativa é que a matéria também seja rapidamente aprovada pelo Senado e depois sancionada pela presidente Dilma Rousseff - quem sabe até com um desconto extra. "Como o Executivo tem a prerrogativa de anistiar devedores, temos esperança de que, a cada ano de impostos pagos em dia pelos hospitais filantrópicos futuramente, o governo perdoe um ano da dívida mais antiga", diz Brito.
Uma vez confirmada, a medida representará um fôlego extra para os hospitais, mas ainda passará longe da solução da crise, ressalta o deputado. "Os impostos atrasados representam apenas um quarto da dívida da rede filantrópica. Para acabar com a sangria que temos hoje dependemos mesmo de um reajuste substancial na tabela do SUS ou então da definição pelo governo de uma nova fonte de financiamento", afirma. Em maio de 2012, a dívida dos hospitais filantrópicos era estimada em R$ 11,24 bilhões, dos quais 43,9% referiam-se a empréstimos bancários, 25,4% a tributos não recolhidos, 24,4% a compromissos com fornecedores, 3,7% a passivos trabalhistas e 2,6% a outras despesas.
De acordo com o relatório apresentado na Câmara, um reajuste de 100% nos pagamentos do SUS para os procedimentos de internação mais frequentes proporcionaria uma arrecadação adicional de R$ 6,8 bilhões para todos os prestadores, e de R$ 4 bilhões para o setor filantrópico. "Isso ainda é menos do que o déficit previsto para este ano, mas já daria às entidades um horizonte para trabalhar sem ficarem tão preocupadas com a insolvência", observa Brito. Outras medidas defendidas pelo documento são a transferência da dívida com bancos privados para bancos oficiais, com juros subsidiados, e a revisão do Programa de Reestruturação e Contratualização dos Hospitais Filantrópicos no SUS.
Os cerca de 700 hospitais contratualizados recebem do SUS uma remuneração mensal fixa, independentemente da produção, e conseguiram recentemente um pequeno reajuste. "Eles vivem uma situação um pouco melhor, mas também estão no vermelho. As Santas Casas de menor porte, porém, que atendem nos municípios com menos de 30 mil habitantes, não são contratualizadas e correm sério risco de fechar as portas", adverte o deputado. Mais de 900 municípios brasileiros dependem exclusivamente dessas Santas Casas.
O reajuste na tabela do SUS está sendo analisado neste momento por um grupo de trabalho do Ministério da Saúde, mas dificilmente virá no percentual reivindicado, de 100%. "Essa crise toda poderia ter sido evitada com a aprovação nos termos originais da PEC 29", lamenta Antonio Brito. A citada Proposta de Emenda Constitucional, aprovada em 2011, obriga a destinação para a saúde de 15% dos orçamentos municipais e de 12% dos estaduais. Para a União, estabelece apenas que o investimento nesse setor deverá ser corrigido anualmente pela variação do PIB nos dois anos anteriores. "O percentual definido anteriormente, e vetado pelo governo, era de destinar 10% dos recursos federais para a Saúde, o que engordaria o orçamento da pasta em aproximadamente R$ 40 bilhões, suficiente para equacionar os problemas", diz.
O contingenciamento de 10% das verbas federais para a saúde parece uma ideia tão boa que a Frente Parlamentar de Apoio às Santas Casas quer insistir nela. "Estamos colhendo assinaturas para apresentar uma emenda popular estabelecendo esse percentual. Faltam umas 300 mil para completar um milhão e meio de assinaturas", diz Brito, que espera chegar ao apoio necessário em mais um mês ou dois. Em outra frente, a bancada da saúde na Câmara também briga por um quinhão na divisão dos royalties de petróleo, metendo a colher num debate já suficientemente acalorado.