A declaração do ministro da Saúde, Ricardo Barros, de que o médico no SUS deve "parar de fingir que trabalha" provocou a ira da classe médica. Entidades como CFM (Conselho Federal de Medicina), o Cremesp (conselho médico paulista) e associaçõs médicas lançaram inúmeras notas de repúdio.
Nas redes sociais, também houve inúmeras manifestações dos profissionais. Uma delas, de Daniel Sabino, do Distrito Federal, me chamou a atenção por retratar a realidade nua e crua dos médicos que estão na ponta do atendimento do SUS, os de família e de comunidade. Ele diz:
"Senhor ministro da saúde, é verdade. Nós, médicos de família e comunidade, fingimos que trabalhamos quando:
Nossas equipes não têm espaço físico adequado para acolher os usuários e realizar escuta qualificada de suas demandas;
Não temos carro oficial disponível para realizar os atendimentos domiciliares de pacientes acamados;
Não temos laringoscópio caso precisemos intubar de urgência algum paciente;
Não temos desfibrilador nem monitor caso alguém tenha um infarto dentro da unidade;
Não temos oxigênio para dar suporte a pacientes com crise de asma ou bronquiolite;
Nossas enfermeiras não têm consultório para compartilhar os atendimentos e a demanda das equipes com o médico;
Quando faltam reagentes no laboratório para os exames do protocolo de seguimento do pré-natal; sem falar em outros tantos necessários para o diagnóstico e acompanhamento de diversas enfermidades;
Quando nossas farmácias não disponibilizam os medicamentos que prescrevemos aos doentes sem dinheiro para comprar;
Você tem razão, senhor ministro. Graças a vocês, nós fingimos que trabalhamos!"
Não há dúvida de que o ministro errou ao partir para a generalização. Perdeu uma ótima oportunidade de agradecer quem de fato trabalha pelo SUS. Como usuária do sistema em vários momentos da minha vida e tendo pessoas da família usando o SUS com frequência, posso dizer que reúno mais experiências positivas do que negativas em relação aos profissionais que ali atuam.
Conheço muitos médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde realmente dedicados, que ganham pouco e trabalham muito sob condições mínimas de estrutura e de assistência. E sofrem com o tratamento indigno que muitos pacientes recebem e com cada perda de chance de cura que se deparam.
Mas, sim, é verdade e todo mundo sabe disso que existem os que "fingem que trabalham". Barros perdeu a chance de tratar desse tema com a seriedade que ele merece. O Ministério da Saúde tem dados suficientes sobre essas fraudes e deveria torná-los públicos. É urgente que se aja com rigor em relação aos "médicos fantasmas" e que se valorize os que fazem a diferença no sistema. As entidades médicas, por sua vez, não podem fechar os olhos para essa realidade das fraudes e deveriam combatê-las com vigor.
Só por curiosidade, fiz uma rápida pesquisa no "Google" usando as palavras-chaves "médicos fantasmas SUS". Apareceram cerca de 568 mil resultados. Há inúmeras reportagens com denúncias em todo o país ao longo dos últimos anos, o que revela que o assunto é antigo e crônico.
Em 30 de julho de 2015, reportagem da Folha mostrou havia investigações sobre médicos fantasmas do SUS em ao menos nove Estados e no Distrito Federal.
O "modus operandi" era praticamente o mesmo em todos os lugares: os médicos chegam, batem o ponto na entrada e vão embora. Atendem em clinicas particulares quando deveriam estar em hospitais públicos. Registram mais horas trabalhadas do que as horas que existem em uma semana ou são vistos no exterior no dia em que "bateram ponto". Em muitos casos, com a conivência dos pares e do poder público. As investigações foram conduzidas por órgãos como Tribunais de Contas, Polícia Federal e Ministério Público.
Em um dos casos, ocorrido em Jandira, na Grande São Paulo, a Justiça está processando três médicos e bloqueou seus bens. Eles terão que devolver R$ 114 mil referentes aos salários que receberam sem trabalhar. Um deles recebia para trabalhar de segunda a sexta, mas só aparecia na unidade de saúde uma vez por semana. O ex-secretário municipal e o ex-prefeito também estão sendo processados.
Esses absurdos só acontecem porque há anuência e cobertura das chefias. Como os salários no SUS são muito baixos e os gestores públicos alegam não poder aumentá-los porque não têm de onde tirar, é comum contratarem médicos já com condição de que eles não precisarão cumprir toda a carga horária.
Ninguém se julga desonesto. Para o gestor, muitas vezes é a única forma de conseguir médicos minimamente qualificados para continuar atuando na saúde pública, cronicamente subfinanciada. Para muitos médicos, a única forma de valer a pena trabalhar no SUS. Ou seja, não existe marido traído nessa história. Aliás, tem sim. O paciente, o usuário do SUS, que fica sem o atendimento.
Uma das alternativas para resolver esse imbróglio de forma honesta e transparente seria que a gestão pública, além de oferecer salários e condições de trabalho mais decentes no SUS, tivesse contratos mais flexíveis que possibilitassem ao médico ganhar pelas horas que realmente vai se dedicar à saúde pública. Que sejam duas, três ou quatro, mas que sejam horas trabalhadas de fato. Do contrário, o fingimento (ou a improbidade administrativa) continuará de vento em popa.