Emagrecedores liberados ficarão em limbo sem controle, diz diretor da Anvisa
29/06/2017
A lei que libera a produção, venda e uso de três inibidores de apetite até então vetados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) contraria outras leis em vigor, "coloca em dúvida a credibilidade do que é produzido no Brasil" e retira qualquer instrumento de controle desses produtos.

A afirmação é do diretor-presidente da agência, Jarbas Barbosa, 60, sobre a lei que autoriza o uso dos anorexígenos femproporex, anfepramona e mazindol, vetados pela Anvisa em 2011. Na época, a agência alegou que essas substâncias poderiam trazer mais riscos do que benefícios.

Para ele, apesar da previsão de estarem sujeitos à prescrição por meio de receita especial, não é possível controlar o uso destes medicamentos por não terem registro na Anvisa.

"Se passam a ser comercializadas sem isso, entram numa espécie de limbo. Quem vai monitorar os efeitos adversos que por acaso ocorrerem? Do jeito que está a lei, a pessoa pode botar um caldeirão atrás de casa e dizer que aquilo é anfepramona", afirma.

Segundo ele, sem prerrogativa para tentar reverter a lei na Justiça, a agência estuda agora medidas para "tentar reduzir os danos" da nova lei, mas não há garantia de que isso será possível. "Sem o registro, a nossa impressão inicial é que não podemos fazer nada. As pessoas estarão a mercê de pessoas inescrupulosas", disse.

Para Barbosa, médicos que apoiaram a liberação foram "ingênuos" sobre os efeitos da lei. "As faculdades de medicina deveriam ensinar mais aos médicos e como separar o que é evidência científica do que é impressão."

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Folha - O Congresso e o Planalto decidiram liberar o uso de inibidores de apetite, decisão que caberia à Anvisa. Como viu essa questão?

Jarbas Barbosa - Lamentamos. Essa lei, semelhante à da fosfoetanolamina ["pílula do câncer "], vai contra outras legislações brasileiras que dizem que o órgão para dar registro de medicamentos é a Anvisa e que, para ser comercializado, todo medicamento tem que demonstrar que é seguro e eficaz.

Mas essa decisão não deixa a Anvisa enfraquecida? Não perde essa imagem também a nível internacional?

Não, porque não vamos mudar nossa prática por conta dessa lei. O que fica enfraquecida é a imagem do país. É um país que diz: 'tenho uma agência regulatória respeitada internacionalmente, mas também posso autorizar medicamentos por fora'.

A própria indústria [farmacêutica] brasileira acha negativa uma lei como essa, porque coloca em dúvida a credibilidade do que é produzido no Brasil. Se isso prosperar, vamos ter duas classes de medicamentos no Brasil: a classe submetida ao âmbito regulatório, de padrão internacional, e a classe daqueles aprovados por lei.

Isso pode abrir precedente para outros medicamentos sem comprovação de segurança?

É difícil fazer essa especulação porque é uma decisão do Congresso. Eu espero que o Congresso tenha consciência de que tem que cobrar eficiência, transparência e fiscalizar a Anvisa, mas não querer substituí-la. Análise de eficácia de medicamentos é uma análise técnica e complexa em qualquer país do mundo, e por isso não pode ser feita por lei. Por isso o próprio Congresso decidiu, lá atrás, que deveria ser feita por uma agência especializada.

Quais os riscos da liberação dos inibidores?

Anfepramona, femproporex e mazindol nunca comprovaram com estudos científicos que são seguras e eficazes.

Na Europa e nos EUA esses mesmos produtos tiveram problemas. Não foi uma decisão arbitrária da Anvisa. Estudos de acompanhamento [dos pacientes] demonstraram que elas não faziam emagrecer, e, se faziam, era por período curto, sem estabilidade. E que os riscos de doenças cardiovasculares eram muito elevados, acima do aceitável.

A lei também acaba gerando uma área de indefinição. Todo nosso sistema de monitoramento de efeitos adversos e o próprio receituário previsto na lei estão atrelados ao registro [na Anvisa]. Se essas substâncias passarem a ser comercializadas sem registro, entram numa espécie de limbo. Quem vai monitorar os eventos adversos que por acaso ocorrerem?

A Anvisa então não teria acesso a esses dados?

Estamos analisando e estudando medidas para tentar reduzir os danos. Vamos fazer tudo o que pudermos fazer para proteger a população.

Mas a lei cria problemas terríveis. Não sei se os deputados perceberam que colocam esses produtos em um limbo regulatório. Quem vai controlar o que está sendo vendido? Alguém pode colocar o nome na caixa e dizer que vende anfepramona. Isso gera ambiente de incerteza e de risco potencial gravíssimo.

Quais seriam as medidas que a Anvisa estuda para monitorar o uso?

Estamos vendo se é possível alguma mitigação, mas é difícil. Sem o registro, a nossa impressão é que não podemos fazer nada. As pessoas estarão a mercê de pessoas inescrupulosas e que sabem que podem oferecer qualquer coisa, porque não vai ter controle.

Do jeito que está a lei, a pessoa pode botar um caldeirão atrás de casa e dizer que é anfepramona. Acredito que os médicos que apoiaram têm uma visão ingênua sobre o que é o mundo de hoje. Eu duvido que um laboratório farmacêutico sério vai correr o risco de colocar um produto no mercado sem registro, porque isso mancha a reputação dele no mundo inteiro.

Pode ir à Justiça para tentar reverter a lei?

A Constituição é clara sobre quem pode fazer ação direta de inconstitucionalidade, e a Anvisa não pode. Mas as instituições que podem vão encontrar parecer da Advocacia-Geral da União demonstrando a ilegalidade dessa lei.

Se esses três anorexígenos não tinha comprovação, por que ficaram 30 anos no mercado? Não houve demora no passado em tomar medidas, uma vez que já havia estudos que apontavam baixa eficácia?

O ambiente regulatório mudou. As exigências de 30 anos atrás são diferentes das que se faz hoje. Também não é inusual que as agências regulatórias peçam mais estudos de medicamentos a partir de relatos de eventos adversos. Foi o que aconteceu com esses três.

Mesmo os estudos clínicos, com milhares de pessoas, não resolvem completamente todo o grau de segurança que precisamos ter, e por isso há a fase 4 de pesquisa. O Vioxx era o anti-inflamatório mais usado no mundo quando foi retirado do mercado. Produzia efeitos gravíssimos, mas eram raros, e que foram percebidos só quando o medicamento entrou no mercado.

A Anvisa cita o caso da fosfoetanolamina para reagir à aprovação. Naquele caso, porém, havia uma discordância clara de entidades médicas à liberação. O que não ocorre agora, em que as principais entidades que atuam no controle da obesidade e o Conselho Federal de Medicina apoiam [os inibidores]. O que acha que pode ter levado a esse processo?

Na época, essas entidades mandaram manifestações para a Anvisa. Qual era o problema dessas manifestações? Elas não eram baseadas em evidências científicas.

As faculdades de medicina deveriam ensinar mais metodologia científica aos médicos e como separar o que é evidência científica do que é impressão. Não à toa há uma preocupação mundial hoje com a propaganda direta de representantes de laboratórios que dão informações ao médico, que muitas vezes não têm como fazer uma avaliação crítica.

Faz falta no Brasil, na minha opinião, um órgão como é o Instituto de Medicina dos Estados Unidos, que é uma autarquia, um órgão autônomo e que faz relatórios que mudam procedimentos, mas trabalha com base em evidências. Não tem um lobby corporativo de um setor ou outro. Não temos isso no Brasil. Temos o Conselho Federal, que vê a parte ética e fiscaliza o trabalho médico, mas que não é o órgão para fazer avaliação científica desse tipo.

Várias entidades de especialistas nossas [do Brasil] estão trabalhando muito bem com avaliação e evidências. Mas outras continuam trabalhando só com a opinião pessoal de especialistas, sem ter avaliação adequada.

No caso da fosfoetanolamina, testes financiados pelo poder público comprovaram que não havia eficácia. Esse poderia ser um caminho? Há alguma conversa nesse sentido?

É válido gastar dinheiro público? Por que não usá-lo para drogas contra o câncer ou doenças raras? O governo usar dinheiro público para medicamentos já vendidos não é um caminho. Isso geralmente é voltado para doenças negligenciadas sem interesse de mercado. No caso da obesidade, há interesse de mercado, e há inclusive drogas novas. Essas não são drogas novas nem são milagre contra a obesidade. Se fossem, não teriam sido banidas.

Médicos que defendem a liberação alegam que ainda faltam opções contra a obesidade e que os riscos à saúde ocorrem somente em caso de abuso.

Discordo. Os estudos mostram que, mesmo quando usados corretamente, esses medicamentos não demonstravam nem segurança nem eficácia.

Outro argumento é que o fato da Anvisa ter proibido em 2011 não retirou esses medicamentos de circulação, porque teria aumentado o contrabando. Também dizem que cresceu o uso off-label de outros medicamentos [que não são aprovados para a obesidade].

 

Contrabando é problema de polícia. Não podemos fazer regra tomando por exceção, pelo crime. Sobre off-label, o médico tem que explicar para a família o porquê está indicando. É uma decisão individual do médico. Quando há evidência cientifica de segundo uso, o detentor de registro entra com pedido na Anvisa.

A obesidade é um problema mundial. Será ótimo quando tivermos medicamentos seguros e eficazes contra a obesidade, e várias indústrias estão buscando isso. Mas nós como autoridade regulatória não podemos enganar a população e dizer que esses inibidores liberados podem ser usados no controle da obesidade quando dados de estudos dizem o oposto.

O que trabalhamos é com estudos científicos, e não com a crença individual de cada um. De 2011 para cá, por que não fizeram estudos para reverter isso? Porque toda vez que testam isso, ao serem usadas no mundo real, essas substâncias se mostraram inseguras e ineficazes.

Raio-X

TRAJETÓRIA

Atual diretor-presidente da Anvisa, cargo que assumiu em 2015. Antes, no Ministério da Saúde, foi secretário de Ciência e Tecnologia, de Vigilância em Saúde e titular da secretaria-executiva

FORMAÇÃO

Médico graduado pela Universidade Federal de Pernambuco (1981). Possui especialização em saúde pública e epidemiologia, mestrado em ciências médicas (1995) e doutorado em saúde coletiva pela Unicamp (2004)




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