O problema da falta de médicos é claramente mais grave no Nordeste e no Norte, onde, em muitos casos, o único acesso à comunidade se dá por vários dias de barco. Mas também nas periferias das grandes cidades, o dilema está presente.
Os prefeitos estimaram, em documento ao governo, em 13 mil o déficit de médicos no país, número que não foi preenchido com a criação de incentivos para a atração de profissionais nessas áreas com o Programa de Valorização da Atenção Básica (Provab), que oferece bolsa mensal de R$ 8 mil e bônus de 10% nos créditos dados pela residência aos médicos participantes do programa.
Da criação do programa ano passado até agora foram preenchidas cerca de 3.800 dessas vagas, segundo o Ministério da Saúde. O valor é substancialmente mais alto do que a média de R$ 1.946,91 de salário bruto mensal pago pelas secretarias estaduais de saúde por uma jornada de 20 horas semanais, segundo dados da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). Mesmo na saúde privada, a média de salário inicial é de cerca de R$ 4 mil pela mesma jornada, segundo Geraldo Ferreira, presidente da Fenam.
"Claro que isso é uma média aproximada para a saúde básica, que chega próximo ao Provab em uma jornada de 40 horas", afirma Ferreira. Na residência, a bolsa paga pelo governo é de R$ 2.861 brutos. "Você pode ficar um ou dois anos no programa e abater os créditos quando for fazer residência. Mas vemos isso com alguma reserva porque a saúde familiar precisaria de um profissional com qualificação maior", afirma Ferreira.
No Amazonas, o último concurso público realizado pelo Estado para a chamada de especialistas para o interior, em 2010, ofereceu 134 vagas com salários que iam de R$ 7,2 mil a R$ 19,8 mil, escalonados de acordo com a distância do município. De todos os classificados, apenas 29 apareceram para assinar os contratos. Destes, cinco já deixaram a função desde então.
Com 1,1 médico para cada 1.000 habitantes, o Amazonas sustenta o sexto pior índice demográfico do país. "E este número mostra apenas parte do déficit", diz o secretário estadual da Saúde, Wilson Alecrim. "O Amazonas tem cerca de 3,5 mil médicos, mas apenas 450 deles moram e atuam fora de Manaus." Em municípios distantes como Maués, Jutaí e Envira, a rede pública conta com apenas um clínico-geral ou um recém-formado para toda a população, e nenhum especialista, como obstetra, anestesista ou cirurgião. Em Maués, por exemplo, a 258 quilômetros de Manaus, só se chega em 45 minutos de avião ou 18 horas de barco.
A falta de atendimento, contudo, não é exclusividade das regiões mais remotas. "Em Porto Alegre, se eu abro vagas para o Hospital das Clínicas ou para o Hospital Conceição, que são nossos melhores, vão surgir centenas de interessados. Mas eu tenho dificuldades em colocar médicos nos bairros mais carentes, como Vila Bom Jesus, Vila Cruzeiro e Lomba dos Pinheiros, que nem são tão distantes do centro", conta José Fortunati, prefeito da capital gaúcha e presidente da Frente Nacional dos Prefeitos.
" Porto Alegre é a quinta melhor colocada, dos mais de 5.500 municípios do Brasil, no IDSUS, e ainda assim nós também temos dificuldades", acrescentou, referindo-se ao índice do Sistema Único de Saúde que classifica as melhores estruturas da rede pública.
Clóvis Boufleur, gestor de relações institucionais da Pastoral da Criança, ONG que dá apoio médico a gestantes e crianças em comunidades carentes de todo o país, pontua não só a falta de estrutura - "há a total ausência de serviços como pediatria e obstetrícia em vários municípios", diz - como as consequências para a saúde que isso provoca. "O maior índice de mortalidade infantil do país hoje é relacionado ao primeiro mês de vida, e o maior índice de mortalidade materna é relacionado ao parto, o que é consequência da falta de atendimento. Muitas gestantes não têm acesso ao pré-natal ou têm que se deslocar grandes distâncias para isso", diz Boufleur.
Em 2010, segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), 90,2% das gestantes brasileiras recebiam consultas constantes durante a gravidez, mas dados da Pastoral da Criança mostram que em algumas locais os níveis são africanos: no Acre o pré-natal cai para 75,4% das mulheres e, no Amapá, para 78,3%. Entre as piores cidades, estão a fluminense Valença (79,4%), a amazonense São Gabriel da Cachoeira (51,7%) e a pernambucana Palmares (50,9%) - índices similares ao de países como Butão (77,3%); Guiné (50,3%) e Senegal (50%).
O país já descentralizou a formação de médicos, mas essa não é, necessariamente, uma solução. Na Universidade Federal do Acre (Ufac), que oferece desde 2002 o único curso de medicina do Estado, são abertas anualmente 40 vagas, número que deve ser ampliado para 80 a partir de 2014. Ainda assim, no vestibular de 2011 para 2012, nenhum dos 40 aprovados apareceu para fazer matrícula. "As 40 vagas foram preenchidas, mas só depois de muitas chamadas", contou o coordenador do curso, Thor Dantas. Foram oito chamadas no total. "Os primeiros colocados passam em outras universidades e são de outro Estado e preferem não vir." De qualquer forma, Dantas entende que, embora ainda incipiente, a criação e ampliação de vagas locais tanto para a graduação quanto para a especialização de médicos é um primeiro empurrão para fixar os profissionais na própria região. "O perfil do médico acriano já está mudando. A maior parte dos especialistas registrados hoje pelo CRM já é de médicos que fizeram residência no Estado. Antes não tinha", contou o coordenador, que se formou em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Eu que optei por voltar depois." (Colaborou Rodrigo Pedroso)