Em São Bento do Tocantins, município que abriga população de menos de cinco mil habitantes no norte do Estado, quase na fronteira com o Pará, dois médicos - um clínico geral e um ginecologista - se revezam para atender a imensa fila de pacientes que se forma na única unidade de atendimento da cidade de segunda a sexta, dias em que dão expediente. A meta da Secretaria de Saúde do município era de que cada um atendesse 20 pacientes de manhã e 20 à tarde até às 18h, mas a necessidade é muito maior: os dois médicos atendem 75 a 78 pacientes por dia, por ordem de chegada. "Tem que ser um atendimento bem rapidinho. E tem gente que não consegue ser atendida e protesta na prefeitura", diz Maria Macedo de Oliveira Santos, 26 anos, à frente da Secretaria de Saúde há cinco meses.
Na lembrança da secretária, a saúde pública de São Bento do Tocantins já teve dias melhores. O município foi uma das mais de 40 cidades do Estado que receberam por oito anos, de 1997 a 2005, cerca de cem médicos cubanos contratados a partir de acordo entre os governos de Cuba e Tocantins para dar atendimento básico a cidades desassistidas. À época, o acordo previa que os cubanos atuassem apenas na saúde básica, recebendo em média R$ 4.500 mensais por 40 horas semanais de trabalho.
A parceria entre Cuba e Tocantins acabou de forma pouco amistosa quando, em abril de 2005, a Justiça Federal concedeu liminar ao Conselho Regional de Medicina de Tocantins (CRM-TO) proibindo que os profissionais estrangeiros atuassem no Estado. Diante da liminar e das críticas do CRM - que alegava falta de qualificação e preparo por parte dos médicos cubanos -, o próprio Fidel Castro teria (segundo a versão que corre na região) mandado um avião a Brasília para levar cerca de 60 profissionais de volta à Cuba.
A discussão em torno da contratação de médicos estrangeiros no Brasil voltou a ganhar força em janeiro, a partir de um pleito apresentado à presidente Dilma Rousseff pela Frente Nacional dos Prefeitos (FNP). A organização entregou um documento assinado por 4.500 prefeituras - das 5.564 existentes no país - chamando atenção para a falta de médicos em cidades de todos os Estados e propondo a regulamentação da vinda de profissionais de fora. Por trás do debate está um problema de curto prazo - a falta de médicos no Brasil - e uma questão estrutural, pois dados do próprio Ministério da Saúde mostram que entre 2003 e 2011 foram criadas 147 mil vagas para médicos no país, enquanto a formação de novos profissionais não passou de 93 mil. De cada quatro formados, um fica no setor público e os demais atuam na saúde privada.
Dados do Conselho Regional de Medicina de São Paulo indicam ainda a desigualdade da distribuição dos médicos no país: enquanto na região Sudeste a proporção é de 2,67 médicos a cada mil habitantes, a relação cai a 1,01 na região Norte. "O especialista, assim como o médico em geral, tende a se instalar onde há trabalho para sua especialidade, onde se paga melhor, onde há possibilidades de aprimoramento e qualidade de vida", aponta estudo da entidade.
O governo, explica o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, não quer atrair médicos estrangeiros para atuar nos grandes centros e nem na medicina especializada. O foco é a chamada saúde básica e atender a um "problema emergencial", diz. "Uma vaga criada hoje em uma universidade vai demorar até oito anos para formar um médico. Neste longo período, o Brasil não vai abrir mão de ter uma política desse tipo", afirma Padilha.
O projeto, contudo, segue em fase de estudo, não possui prazo para ser executado e nem está definido. Segundo Padilha, o governo descarta a vinda de médicos de países com relação habitante/médico menor que a brasileira (2 a cada mil habitantes, segundo o CFM), e a contratação de profissionais graduados em universidades não reconhecidas em seus países. A nacionalidade dos candidatos está aberta. "Não temos preconceito se a formação for válida."
Pelas regras atuais, um médico estrangeiro que chega ao país precisa prestar um exame, chamado de Revalida, reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Aprovado, pode exercer a profissão no país sem nenhuma restrição. O ministério estuda propor a adoção de um exame alternativo que restrinja a atuação dos médicos estrangeiros às areas de saúde básica ou preventiva.
Ainda não foi desenhado o modelo da nova avaliação, mas ela será necessária, segundo o ministro, justamente para impedir que os médicos atraídos entrem na mesma dinâmica que causou a carência atual. "Com o Revalida ele vai atuar em qualquer área. Não queremos atrair um médico que venha para um local e dois meses depois se mude para a capital. O foco é a medicina básica, de prevenção. Estamos falando de uma autorização básica", explica Padilha.
A busca de uma solução para o problema olhando para fora das fronteiras nacionais é criticada por Aloisio Tibiriçá, vice-presidente do CFM. "O ministério tem o hábito antigo, e muito ruim, de mirar nos exemplos dos outros em qualquer assunto sobre saúde em vez de olhar para dentro do Brasil", diz. "Não é de hoje", acrescenta Tibiriça, que o país precisa de planejamento de longo prazo e de investimento na infraestrutura de saúde para resolver o problema. Justamente por não haver esse tipo de orientação é que foi criado o problema atual, na visão do conselho.
Uma política que contemplasse a criação de uma carreira de Estado para o médico, no exemplo de servidores públicos como delegados e juízes, diminuiria a atração feita pelo mercado privado de saúde, avalia o CFM. Nas estimativas da organização, a proporção atual no país é de um médico na rede pública para quatro no sistema privado. "Onde o mercado não chega, é preciso política pública. Precisamos de um plano estrutural. O governo está propondo uma improvisação", diz Tibiriçá para depois questionar: "Como um médico que só fala espanhol vai atender no interior de Roraima?"
No Tocantins, o presidente do CRM-TO, Nemésio Tomasella Oliveira, diz que se opõe não à vinda de estrangeiros, mas à atuação irregular dos profissionais. "Não é xenofobia, queremos apenas que sigam a lei", diz. Hoje, oito anos depois do fim do intercâmbio com Cuba no Estado, o CRM-TO tem um médico cubano, devidamente revalidado, entre os conselheiros eleitos. Na opinião do presidente da entidade, a solução para a saúde no Estado passa pela valorização do trabalho dos médicos do Sistema Único de Saúde (SUS). "Veja há quantos anos a tabela do SUS não é reajustada. Você acha que um médico iniciante vai querer ficar no SUS? Só se estiver louco", diz Oliveira. (Colaborou Juliana Elias)