Recebi dias atrás uma carta anônima de um pediatra que muito me tocou. Ele fala da prática cada vez mais comum de médicos pedindo exames desnecessários e sendo remunerados por isso.
Trata-se de um capítulo a mais na história das “máfias” da saúde. Estamos acompanhando há dois anos os desdobramentos da “máfia das próteses”, médicos que recebiam de fabricantes de próteses e órteses para indicar cirurgias e colocação de dispositivos muitas vezes desnecessários ao paciente.
Não me causará surpresa alguma se em breve a Polícia Federal desbaratar alguma “máfia dos exames”. A seguir, a carta do pediatra XY:
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Prezada Cláudia Collucci,
Trabalho como pediatra, moro em São Paulo e aprecio demais os seus textos.
O ministro da Saúde disse recentemente que os médicos pedem muitos exames normais. Mas acho que ele não sabe (ou não quis dizer) que isso não depende só do desconhecimento ou pressa do profissional. Qualquer hora alguém vai descobrir que há muita desonestidade mesmo.
No consultório, já recebi visitas de laboratórios clínicos oferecendo participação nos faturamentos relacionados aos meus pedidos. Sempre recusei com veemência. Mas há poucos meses estou tendo uma experiência diferente.
Como minha clientela particular caiu muito e tenho raros convênios, fui procurar e fui aceito em uma clínica de diversas especialidades. De cara, me ofereceram participação financeira nos exames. Recusei na hora.
Depois de dois meses, uma outra pediatra se demitiu do serviço. Passei a ver crianças que retornavam com exames solicitados por ela. Cada visita se torna um susto pois os exames são totalmente desnecessários. Por exemplo: qual o interesse em saber a hemoglobina glicada [exame usado para avaliar o quadro de diabetes] numa criança totalmente normal?
Mas o pior veio depois. Há poucos dias, uma mãe de pequeno tamanho trouxe o filho, também pequeno para a idade, mas com muita saúde e ótimo desenvolvimento, em todos os sentidos. Logicamente, os exames eram todos absolutamente normais.
A família do pai também era de pessoas abaixo da média de altura. Procurei tranquilizá-la, mas foi difícil. “Aquela médica me deixou muito nervosa, disse que meu filho estava muito atrasado (sic) e tinha que fazer muitos exames”, disse a mãe.
A médica conseguiu criar uma doença iatrogênica [gerada pela própria prática médica] na mãe, que poderia afetar a criança. Preciso dizer mais? Preciso do emprego e, por enquanto, não vou reclamar. Mas tudo isso está me fazendo muito mal.
Não tenho coragem de enviar um e-mail, com medo de ser identificado, por isso esta carta é anônima. Peço desculpas por isso. Envio grande abraço e desejo muitas felicidades a você e aos seus.
_Atenciosamente,_
Pediatra XY
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Caro(a) Pediatra XY,
Obrigada pela sua carta, ainda que anônima. Vários colegas seus, de várias especialidades, têm compartilhado comigo angústias semelhantes, também sob a proteção do anonimato.
Em fevereiro último, alguns desses relatos possibilitaram a reportagem “Hospital premiam médicos que indicam mais exames”
Esse tema também tem aparecido em vários fóruns. Nesta segunda mesmo, no fórum “A Jornada do Paciente com Câncer”, promovido pela Folha, a questão dos testes e exames desnecessários foi amplamente discutida.
Se a cultura de pedir exames por razões outras (insegurança do profissional ou falta de tempo para uma anamnese bem-feita, por exemplo) já é preocupante, a prática de fazer isso com a clara intenção de obter lucro chega a ser abjeta sob vários pontos de vista.
Primeiro porque isso não traz benefício algum ao paciente. Pelo contrário, um exame mal indicado que, por acaso, indique alguma alteração, certamente vai levar a outros testes igualmente desnecessários e gerar uma enorme angústia.
Em segundo lugar, esses exames sem necessidade estão drenando os recursos públicos e privados da saúde. Em última instância, é dinheiro meu, teu, nosso que está indo para o ralo. Toda a sociedade está pagando (e caro) para que alguns profissionais inescrupulosos ganhem alguns trocados da indústria da saúde.
Se na rede pública o desperdício acontece muitas vezes por má gestão, na rede privada fica cada vez mais claro a teia de conflitos de interesse. Coleciono várias histórias (minhas, de amigos e de leitores) sobre diagnósticos e tratamentos desnecessários.
Já relatei aqui algumas delas, e a coleção só aumenta. “Qual o interesse em saber a hemoglobina glicada numa criança totalmente normal?”, o(a) sr(a). questiona em sua carta. Devolveria a pergunta: Qual a razão em pedir o marcador tumoral CA125 se a paciente nunca teve câncer ou qualquer outra queixa que justificasse o exame? Isso aconteceu comigo no mês passado.
Se mais médicos se indignassem com atitudes desse tipo e falassem “não” para o assédio da indústria da saúde, como o(a) sr(a). relata nesta carta, talvez já tivéssemos avançado algumas casas na busca por um sistema de saúde mais ético, mais eficiente e mais humanizado.