‘O mais importante é saber quando não operar’, diz neurocirurgião
16/02/2017
decisaocirurg
 

“É preciso três meses para aprender a fazer uma cirurgia, três anos para saber quando é preciso fazê-la e 30 anos para saber quando não se deve fazer uma operação”, diz, por telefone, em um tom meio sério meio jocoso, o renomado neurocirugião britânico Henry Marsh.

Essas palavras, na verdade, são de um antigo ditado que costuma circular entre cirurgiões ingleses, mas sintetizam com perfeição sua visão após 35 anos de experiência.

“Quando se é jovem, o médico quer operar todo mundo. É otimista, entusiasta. Depois, começa a acumular resultados ruins e a entender que uma operação não é solução para tudo.”

Os fracassos vão parar no “cemitério que todos os cirurgiões carregam consigo”, citação do médico francês René Lariche que abre o livro de Marsh, Sem Causar Mal – Histórias de Vida, Morte e Neurocirurgia (Editora nVersos). Lançado em 2014, foi escolhido como um dos melhores livros do ano pelos jornais The New York Times, Financial Times, Washington Post e pela revista The Economist.

‘QUANTO MAIS SE PRATICA, MAIOR É O CEMITÉRIO’

No “cemitério particular” de Henry Marsh há muitas pessoas. Ali vive, por exemplo, uma menina ucraniana que, embora tenha sobrevivido a uma complicada cirurgia no cérebro, saiu da sala de operação em más condições e com tão pouca chance de recuperação que Marsh chegou a questionar se era hora de parar de trabalhar.

O neurocirurgião, que ainda acompanha à distância a evolução do quadro de saúde da menina, admite que cometeu um erro de “excesso de confiança” em si mesmo.

Mas, embora esse caso o tenha afetado profundamente, ele conseguiu não se deixar paralisar. “Se martirizar pelo que aconteceu é inútil”, afirma o médico.

A franqueza com que Marsh narra em seu livro casos reais com os quais já lidou em sua carreira é fascinante e ao mesmo tempo aterrorizante.

Os detalhes de cada história, os relatos das conversas com pacientes e as anedotas sobre o que acontece num hospital, às vezes até com uma pitada de humor, são descritos com precisão, graças a um diário que o médico manteve por uma década.

Por vezes, quando a mulher de Marsh, a escritora e antropóloga Kate Fox, lhe perguntava o que tinha feito naquele dia no trabalho, o médico costumava abrir o computador e ler para ela fragmentos do diário.

Foi Kate quem disse: “isso podia ser um livro”.

ERROS MÉDICOS

De acordo com Marsh, a maioria dos erros médicos ocorre fora da sala de cirurgia.

“Muitas vezes as pessoas têm a impressão de que erros estão relacionados à estabilidade do pulso do cirurgião, o que é uma bobagem”, diz categórico. “As coisas não caem da sua mão nem você corta o que não deveria… isso acontece, mas é muito, muito raro”, complementa.

Quase sempre, explica o médico, erros ocorrem na tomada de decisões anteriores, quando tratam de questões sobre operar ou não o paciente, ou que tipo de operação será feita e como ela vai ser executada.

“Pela minha experiência, quando algo vai mal, quase sempre é porque se tomou a decisão equivocada”, avalia o médico.

É durante o processo de decisão que os cirurgiões enfrentam grandes dilemas. Às vezes, têm de optar por aquilo que no jargão médico é chamado de “sacrifícios”: causar algum dano para evitar danos ainda maiores.

Em seu livro, Henry Marsh descreve, por exemplo, o caso de uma mulher que teve extraído um tumor cerebral benigno, mas, no processo, a deixaram com dor facial crônica.

“Isso é um tipo de decisão que você faz antes da operação”, explica ele.

ADRENALINA

O livro de Marsh também traz dados curiosos sobre a textura do cérebro, que se parece uma massa branca gelatinosa, sobre o melhor amigo de um neurocirurgião – não é o bisturi, mas um aspirador – e explica que muitas cirurgias cerebrais são feitas com anestesia local, com o paciente acordado enquanto tem a cabeça vasculhada.

Mesmo com 35 anos de experiência no currículo, Marsh admite que ainda fica nervoso antes de uma operação, especialmente se algo deu errado na última cirurgia similar à que está prestes a fazer.

Ele conta que tudo é muito tenso e exige uma concentração absoluta. “E isso, de muitas formas, é viciante”, admite.

“A gente faz cirurgia porque é emocionante, é emocionante!”, enfatiza, destacando a adrenalina, emoção e ansiedade como partes importantes de se operar.

MÉDICO TEM QUE SER BOM ATOR

Do ponto de vista do paciente, contudo, o que se espera de um médico é algo diferente dessa explosão de sentimentos.

“É muito importante aparentar calma e mostrar que está seguro. Não há nada mais assustador para um paciente que um cirurgião ansioso”, diz ele. “E isso é um dos problemas de ser um médico: você tem que ser um bom ator, para os pacientes e para si mesmo.”

Tradicionalmente, os cirurgiões não falam sobre seus erros. Na verdade, acredita Marsh, não seria possível ter escrito esse livro com a mesma honestidade em outro momento de sua carreira.

Sem Causar Mal foi publicado quando Marsh estava se aposentando como neurocirurgião sênior no Hospital Universitário de St. Georges, em Londres, onde trabalhava há mais de três décadas.

O médico, que ainda trabalha como professor, admite que a cultura a respeito do nível de honestidade que se espera dos médicos está mudando. “Eu mesmo mudei”, diz ele. “Nós afastamos da ideia de que os médicos são deuses e sempre sabem mais e melhor.”

VERDADE ATERRORIZANTE

Questionado sobre quanta informação realmente pode ser dada a um paciente ou aos familiares quando algo é realmente grave, Marsh responde que não pode dizer toda a verdade. “É muito difícil. A verdade é aterrorizante”, afirma.

Ele se defende dizendo que não há certezas absolutas na medicina e que tudo o que os médicos fazem é baseado em probabilidades.

“Se você diz a um paciente que há uma chance de 10% de morrer, vai aterrorizá-lo e ainda vai ter que fazer a operação. A maneira como apresenta a informação é muito importante porque você tem que preservar a esperança e confiança, e também a honestidade, e isso é muito difícil.”

“Eu sempre tentei ser honesto. Mas… Eu tenho certeza que, em algum momento no passado, eu menti um pouco”, ele admite. “Há grandes mentiras e pequenas mentiras”.

Marsh observa que os médicos muitas vezes não sabem o que as famílias e os pacientes acharam da forma como a notícia lhes foi repassada e, por isso, é muito difícil de aprender passar bem as informações mais complicadas.

No caso de Marsh, ajudou muito estar do “outro lado”, como paciente, e também quando seu filho fez uma cirurgia para tirar um tumor no cérebro. O menino ainda era um bebê e ele um médico residente.

ARROGÂNCIA

Marsh responde com um robusto sim quando perguntado se já teve que dizer a algum paciente que cometeu um erro.

“Eu digo às pessoas para me denunciarem quando acho que cometi um erro grave. Eu fiz isso três vezes”, ele admite.

Uma dessas situações está no livro. “Não é fácil fazer isso”, diz ele.

Por lei, no Reino Unido, hospitais têm que respeitar “dever de sinceridade”, no qual é necessário informar e pedir desculpas aos doentes se houve erros que causaram danos significativos.

Mas, em países Reino Unido e Estados Unidos, médicos não são responsabilizados financeiramente se houver denúnica. Mas, de acordo com Marsh, eles têm medo sim de admitir erros. É uma questão de vergonha.

“Se você entrar na sala de operação cheio de dúvidas, você não pode operar”, diz ele. Talvez por isso, de acordo com Marsh, tradicionalmente, cirurgiões normalmente são arrogantes e têm um “ego grande”.

“Em parte, é um mecanismo de auto-defesa, para enfrentar a incerteza e poder fazer um trabalho perigoso. Mas é o paciente que está em risco, não você”, observa.

Fonte: Abramge




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