A ausência de uma cultura de atenção primária e a não disponibilização de produtos e serviços que constam dos protocolos clínicos contribuem, de forma significativa, para levar a Saúde Pública ao banco dos réus. A judicialização é, hoje, um dos maiores problemas enfrentados pelo poder público, e o acúmulo de processos prejudica não só o Judiciário (que não dá conta do volume de ações), mas também a população, que demanda respostas e soluções.
Para falar sobre o preço que os brasileiros pagam pela cultura da judicialização, a Revista DOC ouviu, com exclusividade, o desembargador Renato Dresch, membro do Comitê Executivo Nacional da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Comitê Executivo Estadual da Saúde de Minas Gerais. Dresch apoia a criação de um plano de carreira para a Saúde: “Somente assim os profissionais da Saúde, em todas as áreas de atuação, poderão ter acesso a regras claras da carreira nos níveis municipal, estadual e federal”.
DOC: Qual é a demanda que mais rende processos. hoje. quando se fala de Saúde Pública?
Renato Dresch: São as falhas no Serviço Público de Saúde, pois inúmeros produtos e serviços de saúde incluídos nos protocolos clínicos não são disponibilizados à população.
DOC: Qual é o maior gargalo da Justiça, hoje, em relação às ações movidas?
RD: Sem dúvida, o maior gargalo é o volume de processos. Hoje, tramitam no Brasil em torno de 100 milhões de processos, para uma população de aproximadamente 205 milhões de pessoas. Somente em ações de saúde, temos quase 400 mil processos em tramitação. Vivemos o fetiche da judicialização. Em vez de tentarem a conciliação ou uma solução administrativa, a população em geral aciona o Poder Judiciário, como se este fosse capaz de resolver todos os problemas, inclusive os da Saúde, o que é absolutamente impossível, além de tornar inviável a concretização desejada do direito à Saúde. O Código de Processo Civil de 2015 tenta implantar um processo coparticipativo, estimulando a composição das partes e valorizando os precedentes para que haja maior racionalização das decisões judiciais e, como consequência, mais controle nas demandas temerárias e repetitivas. Espero que a proposta tenha êxito.
DOC: Quais são os aspectos mais polêmicos da judicialização da saúde?
RD: As demandas mais comuns são as de acesso aos medicamentos, embora haja evidências de que há muita carência nos procedimentos eletivos, sobretudo os ortopédicos. Contudo, os aspectos mais polêmicos são as demandas de acesso a produtos para tratamentos oncológicos, que, geralmente, são de alto custo e cujas diretrizes diagnosticas e terapêuticas, por causa do sistema diferenciado de financiamento dos procedimentos e tratamentos em Oncologia, não se restringem às tecnologias incorporadas no SUS, mas sim, ao que pode ser oferecido ao paciente, considerando o financiamento repassado aos centros de atenção e a autonomia destes na escolha da melhor opção para cada situação clínica. Os tratamentos oncológicos realizados pelos Unidades de Assistência de Alta Complexidade (Unacons) e Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacons) têm uma gestão tripartite, porque o credenciamento é dos municípios e estados, enquanto a União habilita os serviços. Há polêmica sobre a responsabilidade, até porque os centros e unidades de tratamento oncológicos deveriam fornecer o tratamento integral, o que, muitas vezes, não ocorre. Além disso, os pacientes que não estão na rede de atendimento oncológico acabam buscando o Poder Judiciário para ter acesso a medicamentos específicos, sem passar pela porta de entrada. Isso é polêmico.
DOC: Qual seria, em sua opinião, a solução para o problema da judicialização?
RD: É imprescindível que se crie a carreira da Saúde. Somente assim os profissionais da área, em todos os campos de atuação, poderão ter acesso a regras claras da carreira nos níveis municipal, estadual e federal. O Programa Saúde da Família (ou Estratégia Saúde da Família, como é designada atualmente), merece atenção especial, porque somente com uma boa atuação na atenção primária poderemos evitar o agravamento para a média e alta complexidades de inúmeros abalos à saúde. E, por fim, é imprescindível que o poder público disponibilize à população, de forma contínua, os produtos e serviços que constam dos protocolos clínicos.