Com a aproximação do Novembro Azul, mês da campanha realizada em todo o mundo dirigida à sociedade e aos homens em especial, inicia-se a conscientização a respeito da prevenção e do diagnóstico do câncer de próstata de forma mais forte. Sobre o tema, a triagem do câncer de próstata ainda gera muita polêmica.
Recentemente Ben Stiller (foto), famoso comediante dos EUA, afirmou que o teste de PSA salvou sua vida. Conhecido por filmes de sucessos como Quem Vai Ficar com Mary?, Zoolander e Uma Noite no Museu, Stiller foi diagnosticado com um tipo agressivo de câncer de próstata há dois anos, segundo revelou no programa de rádio norte-americano The Howard Stern Show, no início de outubro.
Como parte de um check-up anual, ele realizou o teste do antígeno prostático específico (PSA). “Se eu não tivesse feito o teste, que meu médico começou a me recomendar quando tinha 46 anos, eu realmente não sei…”, comentou. “Eu queria falar sobre esse assunto por causa do exame, porque eu sinto que ele salvou minha vida”, considerou. Stiller não foi afetado por sintomas da doença, nem tem histórico de câncer na família.
Na Escala de Gleason (pontuação dada a um câncer de próstata baseada em sua aparência microscópica. Os escores vão de 2 a 10, sendo os maiores associados a piores prognósticos e maior agressividade), Ben Stiller foi diagnosticado com câncer de próstata de escala 7.
Mas como salienta artigo do portal Medscape, assinado por Saurabh Jha, radiologista do Hospital da Universidade da Pensilvânia (EUA), não há como confirmar que o teste PSA salvou a vida do ator. Segundo ele, é preciso analisar a prova, a qualidade da prova, e o ônus da prova. “A afirmação de que não há nenhuma prova de que a vida de Stiller foi salva através do teste de PSA está correto. Mas a declaração não pode ser feita sem determinar a quem cabe o ônus da prova. É sobre aqueles que dizem que o PSA salvou a vida de Stiller, ou para aqueles que dizem que o PSA não salvou a vida de Stiller?”.
“Não podemos solicitar uma prova sem indicar qual nível da prova vamos aceitar. Muitos não acreditam na imaculada concepção, a menos que a testemunhem. Você pode refutar que Júlio César tenha existido se a única prova que você vai aceitar é a evidência fotográfica de sua existência. Na medicina, o nível da prova é uma escala móvel que você pode escolher arbitrariamente, dependendo do que você deseja refutar. Estudos observacionais não são prova a menos que comprove aquilo que você quer comprovar. Estudos clínicos randomizados (ECR) são prova a menos que refute o que você não quer refutar”, critica o Dr. Saurabh Jha.
É fácil confundir evidência e prova. “Dizer que não há nenhuma prova de que a triagem salvou a vida de Ben Stiller é dizer que realmente não há nenhuma evidência de que o rastreio oferece o benefício líquido da sobrevivência. A palavra chave é líquido que, como você pode recordar de suas declarações de impostos, envolve subtração. Se a liquidez é zero, isso não significa que era zero antes da subtração. O benefício líquido do teste pode ser zero se o câncer de próstata encontrado e tratado graças à triagem gera o mesmo número de mortes e vidas salvas pela triagem PSA”, explicou.
Salvar vida através da triagem
O que significa “salvar uma vida” através da triagem? Na explicação do especialista, é “fazer uma pessoa viver mais tempo do que teria vivido se eles não tivessem sido rastreados. Esse dado é difícil de capturar. Estatisticamente, “a triagem salvar vidas” significa menos mortes por câncer que estão sendo rastreados (no caso, pelo teste PSA), levando a menos mortes por câncer de próstata.
Se o teste de PSA, hipoteticamente, salva a vida de três pessoas, mas leva outros dois pacientes a óbito (por causa de complicações da cirurgia), o benefício líquido é 1. Se ele também mata um terceiro paciente, o benefício líquido é zero. “Mas aqui está o ponto importante: mesmo que o benefício líquido da triagem seja zero, isso ainda significa que os três primeiros pacientes foram salvos pela triagem. Estou surpreso que essa lógica elementar, que pode ser entendida pela maioria dos estudantes do ensino médio, iluda muitos médicos”, alertou.
A afirmação de que “não há nenhuma prova de que a vida de Stiller não foi salvo pelo PSA também está correta. Um teste de PSA que leva à descoberta de um câncer de próstata localizado de grau intermediário poderia plausivelmente ter salvado a vida de Stiller. O que também é plausível é a diminuição da perícia e de julgamento” de forma mais objetiva, diz o especialista.
Ironicamente, Ben Stiller é o pior exemplo para o rastreio anti-PSA.
É plausível e possível que o teste de PSA tenha salvo a vida do ator, mas talvez não seja provável. “Este é o cerne da discórdia e depende mais do prognóstico do tumor de Ben Stiller do que do benefício líquido de sobrevivência do teste de PSA.
O benefício líquido de sobrevivência do teste de PSA é controverso. Um estudo realizado na Suécia (ensaio clinico de Goteborg, pesquisa independente com 20.000 pacientes seguidos por 14 anos) mostrou que “a triagem para o câncer de próstata teve um efeito de tratamento quantificável e que 293 pessoas tiveram de ser convidadas a fazer o rastreio para evitar uma morte por câncer de próstata. Isso é impressionante. Para efeito de comparação, o número necessário para a triagem reduzir a mortalidade por câncer de pulmão em fumantes pesados foi de 320”.
A triagem de próstata, pulmão, cólon e ovário não conseguiu demonstrar que o teste de PSA salva vidas. Mas a investigação foi prejudicada porque 90% dos participantes do grupo de controle realizaram um teste de PSA. A primeira pesquisa (próstata, pulmão, cólon e ovário) comparou com o teste de PSA e descobriu, sem surpresa, que o grupo que passou por testes de PSA não viveu mais.
De acordo com o Dr. Benjamin Davies, professor associado de urologia da Universidade de Pittsburgh, o escore Gleason 7 (o diagnóstico de Ben Stiller) é precisamente o grau do tumor que se beneficia da detecção precoce. “Não é nem tão inofensivo que o tratamento seja redundante, nem tão agressivo que o tratamento é algo sem esperança, que se for deixado, tem uma grande chance de gerar metástase e causar morte precoce. Ironicamente, o ator é o pior exemplo para o rastreio anti-PSA”.
A triagem vai além dos benefícios de sobrevivência líquida. O teste PSA pode levar a danos de cirurgia ou terapia de radiação para a próstata. “O valor, ou a inutilidade, de um dano é subjetivo e pessoal”, diz o artigo. “Embora nenhum homem peça para o Papai Noel para ganhar a impotência no Natal, alguns homens preferem morrer do que viver com disfunção erétil – o que significa que, para eles, a impotência é um destino pior do que a morte precoce por câncer de próstata. Outros querem viver tanto tempo quanto puderem. Não há uma fórmula padrão. O rastreio é a mãe de todas as padronizações (one size fits all, no termo original). Você pode ser muito íntimo do seu vizinho, mas você não possui os valores do seu vizinho”.
Urologistas estão ficando melhor em poupar os nervos durante a cirurgia de próstata. “Graças aos avanços na ressonância magnética, urologistas também estão recebendo imagens melhor para identificar cânceres que podem, seguramente, ser assistidos. Depois, há a pílula azul, que amenizou a complicação mais temida da prostatectomia”. Além disso, os prejuízos aos pacientes também têm reduzido. “A avaliação da triagem, que incorpora os danos do passado, não no presente, é como basear a política externa dos EUA hoje, sobre a Guerra Fria”, compara o especialista. “Enquanto urologistas podem não saber mais de epidemiologia que os próprios epidemiologistas, eles são indiscutivelmente mais propensos a dar atenção aos pontos fortes e fracos dos ensaios – é a subsistência da categoria. É certamente um preconceito, mas um viés na direção da verdade. A guerra contra o conhecimento é a batalha mais estranha em um país que ambiciona a perícia”.
Contra o teste PSA
A Força Tarefa de Serviços Preventivos dos EUA (USPSTF, na sigla em inglês) tem se posicionado contra o teste PSA, mas não as mamografias. Isso tem incomodado urologistas norte-americanos. “Em seus rostos, e até mesmo explorando mais profundamente, parece haver pouca justificativa para isso”. Na visão do autor, há certa negligência no tratamento da próstata. “É desanimador que, enquanto os meninos usam rosa para aumentar a consciência em relação ao câncer da mama (devido à campanha mundial Outubro Rosa), as mulheres não costumam retribuir o favor. Quando foi a última vez que você viu uma mulher vestindo azul para aumentar a consciência do câncer da próstata?”, questiona o Dr. Benjamin Davies.
A triagem, uma escolha individual, tornou-se uma prerrogativa da sociedade. “Isso vai causar uma dissonância cognitiva. Alguns adotaram um meio termo e dizem que a triagem deve ser restrita à tomada de decisão compartilhada. Como você conduzirá essa decisão compartilhada sobre o exame PSA? Não é tão fácil como se pensa”.
Quando um paciente revela vontade de fazer um exame PSA, o médico precisa apresentar as possibilidades. O especialista fornece o exemplo hipotético de um paciente que pede o exame, baseado no alerta de sua esposa. Após apresentar “visões” de futuro – algumas até mesmo absurdas – , e diante da confusão do paciente, o médico destaca que o palpite (escolha) do paciente é tão boa quanto a do médico. Ou seja, não há como saber se de fato o PSA o ajudará ou não.
É importante apresentar dados para ajudar o paciente a fazer uma escolha informada. Contudo, o mais importante é ter em mente que “você é o médico, e não o paciente. Ele é que tem que buscar a sua opinião, e não o contrário”. Porém como a questão do PSA não tem consenso, as consequências não podem ser facilmente previstas. Depende muito de cada situação.
Ao concluir, o autor volta ao caso de Ben Stiller. “Alguns dizem que ele está espalhando a desinformação ao defender o teste PSA. Eu diria que não é possível espalhar desinformação sobre o rastreio porque não temos uma pista. O rastreio é um problema de informação; alguns se beneficiam, outros são prejudicados, mas não sabemos quem se beneficiará ou quem vai ser prejudicado. Isto tem um nome: incerteza. Eu sou um grande defensor de incerteza pública. Quanto mais incerto o público estiver, menor a será a certeza absoluta, menos religiosos e dogmáticos eles serão, e melhor será o mundo. Ben Stiller aumentou a incerteza pública sobre o exame de PSA. Eu acho que isso é bom”.