Passeando pelo Folio - o festival literário internacional de Óbidos, em Portugal -, encontrei a escritora Andréa del Fuego, autora do belíssimo "Os Malaquias" (para quem não leu, fica a dica). Ela trazia nas mãos um exemplar do livro "Os Pacientes de Freud", de Mikkel Borch-Jacobsen, e estava ansiosa para voltar para o hotel e ler os destinos dessas figuras, em sua maioria, da alta burguesia judaica vienense. Mas ainda veio comigo até a livraria - que fica dentro de uma igreja - para eu comprar meu exemplar, antes que fosse tarde demais. Já era noite, e tudo começava a fechar no vilarejo.
Voltei para casa e deixei o livro de repouso algumas semanas. Eu fiz análise por cerca de dez anos, e durante esse tempo evitei ler textos de Freud ou Lacan. Lia quando era importante para o meu trabalho: o seminário de Lacan sobre "A Carta Roubada", de Poe, por exemplo; "Moisés e o Monoteísmo", "A Interpretação dos Sonhos" ou "O Homem dos Ratos", de Freud. Eu achava que se me aprofundasse na teoria acabaria por intelectualizar demais a prática. Eu queria a experiência, sem a racionalização. Não sei se foi uma boa escolha, mas foi o meu caminho.
Desde que interrompi o processo de psicanálise, senti-me mais livre para ler sobre ela. Achei interessante, portanto, a ideia de mergulhar em pequenas biografias de pacientes de Freud. O filósofo e historiador Borch-Jacobsen tenta "reconstruir as histórias - nalguns casos, cômicas, geralmente trágicas, mas sempre impressionantes - desses pacientes, durante muito tempo anônimos e sem rosto. No total, trinta e um retratos em miniatura, forçosamente incompletos, esboçados a partir dos documentos hoje acessíveis".
Esses pacientes, como se sabe, ganharam outros nomes nos casos de Freud, justamente para preservar sua privacidade. Mas com a psicanálise se espalhando pelo mundo era de se esperar que historiadores e jornalistas fossem atrás dos verdadeiros nomes e entrevistassem as pessoas reais. A partir de então, descobriu-se uma distância às vezes considerável entre o que essas pessoas diziam e o que Freud relatava nas suas histórias de caso. O que Broch-Jacobsen faz é justamente contar a história desses pacientes, contrapondo-as aos relatos do pai da psicanálise.
A primeira coisa que chama a atenção é o fato de fazerem (quase) todos parte dessa burguesia judaica extremamente rica de uma Viena pré-guerra. Os pacientes são de um mesmo meio social, de um circuito em que muitos se conhecem, casam entre si, quase uma confraria. Freud ganha fama nesse meio e se torna o médico fetiche de muitos. Mas um médico fetiche que fracassa boa parte das vezes.
O livro começa pela famosa Anna O., em realidade Bertha Pappenheim, a paciente princeps da psicanálise, tratada pelo mentor de Freud, Josef Breuer. "Moça alegre e extremamente enérgica", sufocava numa vida confinada em que a mulher não tinha espaço. Primeiro, refugiou-se num mundo imaginário a que chamava o seu "teatro privado", depois na doença. Breuer diagnosticou-lhe histeria (e como não ser histérica num mundo que cerceava a liberdade da mulher?). Paralisada na cama, Bertha desenvolveu vários sintomas clássicos: dores do lado esquerdo do occipício, perturbações da visão, alucinações, contraturas e anestesias diversas, nevralgia facial e afasia.
Breuer notou que seu estado melhorava quando ela contava "as tristes histórias do seu teatro privado - procedimento que ela batizou talking cure (ou seja, cura pela fala)", o princípio da psicanálise. Mas a melhora durou pouco, e o tratamento também. Tempos depois, Bertha mudou-se para Frankfurt, onde passou a publicar contos para crianças e realizou trabalho social. Lançou uma campanha para denunciar a prostituição e o tráfico de mulheres nas comunidades judaicas e fundou a Federação das Mulheres Judias. Rejeitou totalmente a psicanálise e o período em que foi paciente de Breuer.
Ernst Fleischl von Marxow foi vítima das experiências de Freud com a cocaína, naquela altura um remédio comercializado legalmente. Em 1884, Freud publicou o artigo "Sobre a Coca", em que afirmava que a cocaína era boa para dispepsia, a caquexia, o enjoo, a neurastenia, a histeria, a melancolia, a asma e a impotência. Mas Fleischl ficou num estado indescritível. Desenvolveu alucinações típicas de um cocainômano e acabou morrendo em outubro de 1891.
Mathilde Schleicher também foi vítima da medicação. Morreu de overdose de sulfonal, "envenenada pelo medicamento receitado pelo seu médico". Fanny Moser foi a paciente responsável por Freud desistir da hipnose. A família de Anna von Lieben odiava Freud, pois achava que ele agravava o estado da paciente em vez de aliviá-lo. Ilona Weiss, ou Elisabeth von R. nos escritos de Freud, "foi a primeira análise completa de um caso de histeria". Ilona sofria de dores agudas e perturbações na locomoção. Freud leu em seus sintomas físicos a expressão de uma paixão pelo cunhado. Já Ilona dizia que "Freud era apenas um jovem barbudo especialista dos nervos a quem me enviaram. Ele queria convencer-me de que eu estava apaixonada pelo meu cunhado, mas não se tratava disso na realidade".
No entanto, quem garante que ela diz a verdade? Quem garante que ela não estava apaixonada pelo cunhado e não quis assumi-lo? Não se pode tomar a palavra de um entrevistado como verdade absoluta. Este, para mim, é o primeiro ponto questionável do livro de Borch-Jacobsen. No preâmbulo, ele afirma: "as histórias que aqui vão ler são terra-a-terra, sem brilho. Nenhuma teoria nem comentários: ative-me à superfície dos fatos, documentos e testemunhos disponíveis, sem especular sobre as motivações ou o inconsciente de um ou de outro".
Ora, Borch-Jacobsen que me desculpe, mas todo historiador - inclusive ele - sabe que não há imparcialidade. Todo biógrafo sabe que não existe uma versão universal. Narra-se uma história de um ponto de vista. Sempre. Não existe isso de se ater à superfície dos fatos. Afinal, de que fatos? Que superfície? Essas mesmas vidas poderiam ser contadas de outras maneiras. De outros ângulos. Ele escolheu o que contar, como contar, pois queria provar a sua teoria: o fracasso de Freud como terapeuta e o consequente embuste da teoria psicanalítica. Trata-se de um livro tendencioso que se propõe isento. Teria sido mais honesto assumir sua intenção. O fato de ele não refletir sobre o assunto não faz com que sua narrativa se torne imparcial. Não faz dela uma verdade soberana.
O próprio Freud assume seus fracassos. Borch-Jacobsen fala disso uma única vez, no relato da vida de Fanny Moser. Ele cita o seguinte comentário de Freud: " Não posso levá-la a mal por não ter ainda perdoado meu lastimável erro de diagnóstico de então. Não só me faltava muita experiência, mas também a nossa arte de ler o que se esconde na alma ainda estava na infância". Mas do fracasso vem o sucesso. É ele mesmo quem diz: "Foi precisamente a propósito deste caso e do seu desfecho que reconheci que o tratamento por hipnose era um método que não fazia sentido, nem tinha valor, e que tive a necessidade de criar a terapia psicanalítica".
Freud pode não ter sido o melhor terapeuta. Errou muitas vezes, e assumiu muitos de seus erros. Mas sem o fracasso não teria conseguido elaborar sua teoria. Há diversas críticas possíveis à psicanálise, mas a de Borch-Jacobsen não me convence. Avaliar a incompetência da teoria psicanalítica pela história dos pacientes de Freud é tão simplório quanto avaliá-la por um viés científico. É verdade que Freud era médico e por muito tempo estava interessado em provas, mas depois criou um modo de compreensão do mundo que já não cabia nesse sistema. Não cabia numa ciência que pretende apontar, localizar, provar.
Ele deixa de ser médico quando faz um salto para a interpretação. Como ciência, a psicanálise não tem grande valor. Não prova grande coisa. E é por isso que há uma lacuna tão grande entre a história de caso (e tudo o que ela tem de ficção, de narrativa) e a biografia propriamente dita de seus pacientes. Que a psicanálise tenha algo de literário não é um mal. Freud entendeu que a vida é uma criação de sentidos constante. Os sintomas só têm graça se interpretados. Criar uma narrativa para uma perna imobilizada é mais interessante do que justificá-la apenas por uma lógica científica.
É nesse ponto que a psicanálise se aproxima da literatura. Ambas partem do princípio de que a vida não tem um sentido em si. Precisamos criá-lo, interpretar os sintomas. E para se criar sentido é necessário uma boa dose de humor. Quando sabemos que a verdade não existe em si, temos também que rir de nossas interpretaçõese de nossa busca desenfreada por um sentido. Não tenho certeza quanto à psicanálise, mas a literatura, ao mesmo tempo que interpreta, ri constantemente da sua impossibilidade de interpretação. Ri toda vez que se depara com a sua própria impotência. É esse riso que falta no livro de Borch-Jacobsen, aliás um livro interessante justamente pelo que não se pretende: pelo seu lado ficcional, narrativo, da biografia dos pacientes de Freud. Vale a viagem por essas vidas, mais do que a conspiração por trás delas.