Um novo conglomerado de informações sobre o DNA dos brasileiros foi construído por cientistas da Universidade de São Paulo (USP) a partir da análise de 1.872 amostras sanguíneas. Além de confirmar a diversidade da nossa genética — com influência de europeus, indígenas e africanos —, o trabalho tem o potencial de impactar diretamente na vida de pessoas acometidas por doenças de difícil tratamento, como cânceres e Alzheimer, e até na recuperação de órgãos do corpo danificados, como os rins e o coração.
“Essa biblioteca de células-tronco tem valor muito expressivo porque pode ajudar em estudos que permitam a medicina personalizada, com o uso, por exemplo, de remédios para os casos em que os recursos hoje disponíveis não têm sido eficazes”, explicou ao Correio Lygia da Veiga Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE) da USP e uma das autoras do estudo, divulgado neste mês, na Scientific Reports, revista do grupo Nature.
As amostras sanguíneas foram retiradas do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (ELSA-Brasil), também da USP. A primeira constatação dos pesquisadores foi a de que o material tinha uma contribuição genética europeia que variava de 14,2% a 95%; uma africana, de 1,6% a 55%; e uma indígena, de 7% a 56%. “Era a representação que esperávamos: uma mistura desses três genomas. Outro ponto que também nos surpreendeu foi ver a baixa representatividade de nações latinas”, disse Pereira.
Comprovada a miscigenação brasileira, os cientistas reprogramaram 18 amostras sanguíneas para que se transformassem em células-tronco pluripotentes, estruturas que podem dar origem a qualquer tecido humano, como neurônios, células hepáticas e cardíacas. Substâncias com potencial curativo poderão ser testadas nesse banco de dados a fim de verificar, por exemplo, o grau de eficiência e toxicidade delas, com a possibilidade até de essa solução substituir os testes com animais. O trabalho também poderá ajudar no entendimento da rejeição a medicamentos já disponíveis, já que os genes são apontados pelos especialistas como o fator mais importante para as diferenças de respostas a fármacos.
Maria Teresa Rosa, geneticista do Instituto de Oncologia Aliança, em Brasília, acredita que as aplicações propostas pelo grupo são importantes, mas destaca que, para chegar à medicina personalizada, muito ainda precisa ser feito. Além dos mistérios escondidos no DNA humano, há obstáculos sociais e econômicos para a disseminação da prática. “Realmente, os tratamentos tendem a ser individualizados de acordo com o perfil genético, pois sabemos que a resposta a determinadas medicações e até os efeitos da alimentação dependem do DNA do indivíduo. Mas essa análise genética é algo distante. Exames disponíveis são caros e ainda não temos acesso a eles pela rede pública”, ilustrou.
Rosa ressalta ainda que os dados das etnias percebidos na análise final reforçam um conhecimento disseminado. “Essa pesquisa constatou o que já se sabia. A população brasileira é altamente miscigenada devido a influências desses três povos, o que é bastante diferente de outros lugares do mundo em que é comum encontrarmos apenas um tipo de ancestral.” Remédios e práticas testados em países com essa característica, portanto, podem não surtir o mesmo efeito em pacientes brasileiros.
Análise ampliada
Os autores do estudo contam que o trabalho teve início com um material genético diferente, mas a falta de diversidade no DNA analisado fez com que os resultados iniciais fossem descartados. “Na verdade, começamos produzindo células-tronco embrionárias a partir de embriões de fertilização. Nas análises do genoma, vimos que mais de 90% do material mostrava uma origem europeia predominante. Achamos estranho e imaginamos que isso havia ocorrido porque os embriões tinham vindo de clínicas particulares. Como nem toda a população tem acesso a esses lugares, fomos atrás do ELSA”, detalhou Pereira.
Com o apoio do Ministério da Saúde e realizado de dois em dois anos em um grupo de 15 mil voluntários, o ELSA tem o intuito de descobrir a incidência e fatores de risco de doenças crônicas na população brasileira. Para os cientistas da USP, pelo banco de dados construído, é possível afirmar que as células-tronco desenvolvidas representam a genética dos brasileiros, o que agrega ainda mais valor ao material, já que a maioria dos medicamentos é feita com base em ascendência europeia, asiática, africana ou de índios americanos.
Os autores avaliam positivamente os resultados alcançados, mas ressaltam que o trabalho precisa ser expandido. “Nosso objetivo futuro é analisar pelo menos 5 mil pessoas de São Paulo. Outra coisa que pode ajudar é sequenciar totalmente o genoma dos participantes, já que a nossa análise ainda foi muito superficial. Se conseguíssemos financiamento para analisar todos os participantes do ELSA, seria algo ainda melhor”, comentou Pereira.