Para reverter déficit nas contas do SUS e diminuir as demandas ao sistema, o ministro da Saúde propõe a criação de um plano mais barato e com cobertura abaixo do rol mínimo exigido pela ANS. A iniciativa pode ajudar na recuperação de segurados pelas operadoras do segmento, mas precisa de ajustes para convencer a defesa do consumidor e alcançar seu objetivo
O sistema de saúde brasileiro está na berlinda e, ao que tudo indica, fará parte da agenda das eleições municipais. É que dados das últimas pesquisas do Ibope apontaram que, em todas as regiões do país, a saúde é a maior preocupação entre os eleitores. No Rio de Janeiro, 54% deles afirmaram que esta é a área em que a população está enfrentando maiores dificuldades. Em segundo lugar, aparece a segurança, escolhida por apenas 15% dos cidadãos cariocas – mais de 30 pontos percentuais de diferença.
Toda essa apreensão tem fundamento: a Constituição brasileira determina que o acesso à saúde é direito garantido pelo Estado ao cidadão. Desde 2012, entretanto, os repasses do Sistema Único de Saúde (SUS) a estados e municípios, que deveriam fazer valer a norma, somam um déficit de R$ 3,5 bilhões, conforme anunciado no último mês de agosto pelo Ministério da Saúde.
Segundo o sistema público, engorda este rombo o fato de que, em 2015, mais de 430 mil serviços médicos foram prestados, pela rede pública, a pacientes que possuem plano de saúde, levados a hospitais públicos como procedimento padrão em casos de emergência. A cobrança foi de R$ 709 milhões às seguradoras responsáveis, mas apenas R$ 399 milhões foram devolvidos ao sistema, segundo dados da Agência Nacional de Saúde (ANS). O restante foi questionado pelas companhias e depositado em juízo na conta da entidade ou incluído na dívida ativa federal.
À primeira vista, a proposta de criação do chamado plano de saúde “popular” ou “acessível”, introduzida pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros, poderia unir o útil ao agradável ao proporcionar tanto o desafogamento do SUS como recuperação de parte dos 1,3 milhões de usuários perdidos pelo segmento suplementar no último ano, mas vem dividindo opiniões.
A ideia inicial, a ser discutida e transformada em projeto até outubro deste ano, era permitir a disponibilização de planos de saúde com cobertura menor que o rol mínimo de procedimentos estabelecido pela ANS e, portanto, mais baratos. Diante de contestações ligadas aos direitos do consumidor, o ministro declarou posteriormente que o foco não estaria na redução da cobertura obrigatória, e que haveria outra maneira de reduzir o preço dos planos, sem especificar qual.
Ainda assim, a possibilidade continua em aberto, e o assunto ficará a cargo do grupo de trabalho criado para discutir sobre a criação do produto. Entre os membros, estão representantes do Ministério, da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) e de instituições convidadas após as reações contrárias à iniciativa, como a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) e a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). A avaliação de cada um deles mostra que ainda não há consenso sobre o plano de saúde popular. Enquanto as arestas não forem aparadas, a proposta não avançará.
FenaSaúde – A presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar – que representa a CNseg no debate -, Solange Beatriz Palheiro Mendes, defende que os representantes do setor se unam para construir uma proposta aderente. Ela ressalta as severas restrições pelas quais o segmento passa, com uma média de cem mil beneficiários a menos por mês. “O desemprego e a falta de renda dos brasileiros foram a gota d’água nesse copo, que já estava cheio. Este é o momento para discutir como dar maior acesso ao plano de saúde privado à população”, enfatiza. A executiva acredita que um modelo com custo reduzido é bem-vindo, mas que o melhor caminho para alcançá-lo é trazer o consumidor para a discussão. “Temos que ouvir aqueles que, de fato, se beneficiarão com os serviços. Eles são os principais interessados e vão dizer o que querem de um plano e quanto podem pagar. A expectativa deve estar associada à capacidade de pagamento, sem perder de vista o cuidado com a saúde e as melhores práticas. Acredito que esse modelo passará por prestigiar a atenção primária”, explica. Segundo Solange, a Saúde Suplementar oferece maior alcance à assistência a saúde, portanto, desonera o SUS.
Proteste – A coordenadora institucional da Proteste, Maria Inês Dolci, afirmou que a entidade não será a favor de um plano restrito. “Não cremos que resolveria o problema da saúde pública: o gasto com ações de atenção básica, como consultas em postos de saúde, representou, no ano passado, 13,7% do orçamento do Ministério da Saúde, enquanto as despesas com procedimentos de média e alta complexidade, como internações e cirurgias, consumiram 42,1%”, declara, citando dados do órgão. “Não faz sentido o consumidor investir num plano que o obrigará a procurar o SUS em casos mais complexos”, reitera a executiva.
Para Dolci, o desafio do brasileiro hoje é garantir o atendimento à saúde diante da escassa oferta de planos de saúde individuais, elevados preços e as filas demoradas do SUS. “É preocupante o consumidor perder a cobertura mínima obrigatória, que foi conquista da lei 9.656, em 1998. Uma proposta nesses moldes vai na contramão do que a ANS tem feito”, completa.
Abramge – O diretor executivo da Abramge, Antonio Carlos Abbatepaolo, afirma que a associação está disposta a enriquecer o debate a respeito do tema. “A entidade considera positivas iniciativas que tenham como objetivo garantir a sustentabilidade do setor de saúde brasileiro em um momento em que sofre uma grave crise orçamentária nas esferas pública e privada”, pontua.
Ele acredita ainda que a oferta de planos acessíveis poderá abrir portas para o ingresso de beneficiários na saúde suplementar e propiciar uma alternativa para o retorno de indivíduos que perderam seus planos devido ao aumento do desemprego no país. “Desde janeiro de 2015, quase dois milhões de cidadãos perderam seus planos de saúde em virtude da crise econômica”, informa. De acordo com a FenaSaúde, desse total, 187 mil perdas foram oriundas dos planos coletivos empresariais. Uma posição final sobre o assunto, Abbatepaolo só garante após o detalhamento e avaliação da proposta.
Agência Nacional de Saúde – Consultada em 23 de agosto, a autarquia afirmou desconhecer a comissão de trabalho que estuda a viabilidade do plano de saúde acessível. “A Agência reitera sua autonomia técnica para regular o mercado de Saúde Suplementar, nos termos delimitados pelas leis 9.656/98 e 9.961/2000”, informou comunicado oficial divulgado na mesma semana.
Ministério da Saúde – O ministro da Saúde, Ricardo Barros, bate na tecla de que a discussão busca elaborar um projeto que melhore a qualidade no atendimento primário e acabe com as grandes filas, além de permitir o acesso de mais pessoas ao atendimento médico, ampliando a integração hospitalar no país. Ele garante que caberá às seguradoras propor seus modelos para os novos planos, e que a oferta não será obrigatória. “Quem regula é a ANS, quem fiscaliza é o Procon, e as pessoas aderem ou não, livremente. Ninguém é obrigado, e quem não está satisfeito não precisa continuar pagando o plano de saúde. É uma questão de oferta e qualidade do serviço e de manutenção dessas pessoas no sistema, o que alivia o SUS”, explica.
Ele estima que, com a criação de planos acessíveis aos quais a sociedade queira aderir, os recursos para investimento na saúde possam crescer em R$ 20 ou até R$ 30 bilhões. Ressalta ainda ser contra a criação de qualquer tipo de imposto para financiar a saúde e que a ideia não ensaia uma privatização do setor, como apontado em algumas críticas. Seu foco seria melhorar a gestão dos recursos existentes.
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A principal característica do projeto tem potencial para atrair os consumidores de planos de saúde: o preço baixo. O treinador de futsal Rodrigo Martins somente percebeu a importância da proteção quando ele e sua filha de apenas dois anos de idade precisaram ser internados em um hospital público. “Hoje, considero uma necessidade, investimento que você só valoriza quando precisa de atendimento”, diz. Entretanto, os altos valores das mensalidades o impedem de manter os planos. Para garantir cobertura de saúde à sua família, composta por três pessoas, precisaria comprometer quase 30% de sua renda mensal.
Conforme vem sendo amplamente debatido pelo segmento de saúde suplementar, fatores como os altos custos médicos, o envelhecimento da população brasileira e a alta judicialização acabam causando grande aumento nos preços dos planos oferecidos e afetando a sustentabilidade do sistema. Nesse cenário, mesmo um plano com cobertura restrita poderia ser interessante de acordo com Martins, desde que o produto atendesse às suas necessidades. Contar com o SUS tem sido uma verdadeira roleta russa em sua vida. “Em algumas ocasiões fui bem atendido, em outras, não. Na ultima vez que procurei a emergência, a demora foi tão grande que precisei recorrer ao atendimento particular”, conta.
A conta do SUS
Para solucionar parte da crise, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, estuda também um modelo de contrato direto entre hospitais públicos e operadoras, que possibilite ressarcimento mais rápido de valores já acordados para os atendimentos de emergência. Mas o impasse continua, pois seguradores apontam a necessidade de uma discussão mais ampla acerca do assunto, incluindo a reavaliação da tabela de valores utilizada e do tempo que o SUS leva para comunicar a entrada de um paciente, por exemplo. Segundo eles, há casos em que o segurado passa 15 dias internado em hospital público e a operadora recebe apenas a cobrança, sem ter a oportunidade de transferi-lo à sua rede credenciada. Situações como essas seriam, afinal, motivadoras dos numerosos questionamentos por parte das companhias que fazem com que a conta não feche.