O drama da saúde no estado, que sofre as consequências da crise financeira do Rio, foi parar na Justiça. O Ministério Público Federal está exigindo que o governo transfira imediatamente R$ 1,3 bilhão em recursos não repassados ao Fundo Estadual de Saúde (FES), que deveriam ter sido aplicados no setor no ano passado. Os procuradores alegam que, como não gastou esse valor, o estado não cumpriu, em 2015, a exigência constitucional de aplicar 12% da receita arrecadada na área. A informação consta de relatórios de gestão da própria Secretaria estadual de Saúde, citados na ação civil pública.
Os procuradores da República observam ainda que o Rio tem lançado mão, desde 2013, de uma espécie de manobra orçamentária para burlar sistematicamente a lei. Em 2013, os valores empenhados (contratação e reserva da verba) e liquidados (compromisso de pagar pelo bem ou serviço já prestado) alcançaram 12,02% da receita, mas somente 9,37% foram efetivamente pagos. Parte dos valores ficou como “restos a pagar” para o ano seguinte. O mesmo aconteceu em 2014: 12,01% foram liquidados, mas só 9,84% repassados ao Fundo Estadual de Saúde. Mas foi em 2015, com o caixa ainda mais minguado, que a situação atingiu um ponto crítico: somente 8,09% (R$ 2,8 bilhões) foram pagos. O estado deixou, então, R$ 1,4 bilhão como restos a pagar. Até meados deste ano, apenas R$ 155 mil tinham sido pagos. Por isso, na ação, o MP está exigindo o depósito de R$ 1,3 bilhão no Fundo Estadual de Saúde.
No dia 20 de junho, as procuradoras Roberta Trajano, Marina Filgueira Fernandes e Aline Caixeta entraram na Justiça com um pedido de urgência para o caso. Na denúncia, elas mencionam “um quadro crônico de descumprimento efetivo do percentual mínimo constitucional”, referindo-se aos 12% previstos em lei. Desde segunda-feira, a Secretaria estadual de Saúde vem sendo procurada para comentar a ação do MPF, mas não deu retorno. Na própria ação, o estado alega que a medida judicial pode aprofundar a crise financeira fluminense.
"SITUAÇÃO EXTREMAMENTE PRECÁRIA"
No último dia 3 de agosto, o juiz Flávio Oliveira Lucas, da 18ª Vara Federal, determinou que o estado fizesse o imediato repasse ao FES. Em sua decisão, ele considerou que “há realmente necessidade de que se garanta o repasse de recursos (...) ao Fundo Estadual de Saúde (...), já em situação extremamente precária antes mesmo do início da crise financeira noticiada pelo estado (...)”. O juiz observou que o estado vive uma situação dramática. “O desequilíbrio financeiro é tamanho que em 17/06/2016 foi decretado estado de calamidade pública pelo governador em exercício Francisco Dornelles”, escreveu. Ele ressaltou que a “crise financeira atinge todos os serviços, mas a saúde ganha destaque diante das consequências sociais que podem ocorrer caso o serviço seja interrompido”. O governo recorreu. e a decisão foi suspensa. O caso agora será julgado pelo Tribunal Regional Federal.
Para as procuradoras, a falta de repasses pode levar ao colapso do atendimento público de saúde. Elas citam na ação o processo administrativo (PA nº 1. 30.012.000003/2016-70), que tramita na Tutela Coletiva da Saúde da Procuradoria da República no Rio, onde há “notícia de grave insuficiência dos recursos para o financiamento da saúde no estado”. O governo do Rio administra cerca de 60 unidades de saúde, entre hospitais, UPAs e institutos.
— Essa operação do estado acabou gerando expressivo volume de restos a pagar não quitados em sua totalidade pelo governo. Além disso, notamos que situação semelhante se repete este ano, com a ausência do oportuno repasse mês a mês da contrapartida estadual ao Fundo Estadual de Saúde — afirmou a procuradora Roberta Trajano.
Com base em relatórios produzidos pela própria Secretaria estadual de Saúde, além de material reunido por uma assessoria técnica do Ministério Público estadual e por uma comissão formada pelo Conselho Regional de Medicina (Cremerj), as procuradoras comprovaram o descumprimento do repasse mínimo para a saúde fixado pela Constituição.
— São evidentes os reiterados adiamentos de pagamento. A soma total é de R$ 1.372.163.631,92 em restos a pagar, reduzindo drasticamente o financiamento da saúde no estado — observa a procuradora Aline Caixeta.
O Fundo Estadual de Saúde foi instituído pelo então governador Wellington Moreira Franco, em agosto de 1989, por meio de um decreto, como determinava a Constituição Federal, aprovada um ano antes. Sua finalidade é dar suporte financeiro a ações da Secretaria estadual de Saúde.
REDE EM ESTADO "CALAMITOSO"
A Procuradoria rebate a alegação do governo estadual, de que a liminar provocaria grave lesão à ordem e à economia pública, com o “agravamento da crise financeira”. Para o MPF, o reflexo na ordem pública consiste na “inexistência de recursos para (...) cuidado de doentes (...), feridos e lesionados” e no “calamitoso estado da rede estadual de saúde, bem anterior à própria decretação do estado de calamidade pública pelo governador em exercício”.
Nos últimos dias, a estudante Raiza Santos Florentino, de 20 anos, virou testemunha da crise na saúde do estado. Com a filha Stafany, de 1 ano e 8 meses, no colo, ela tem perambulado sem sucesso por unidades estaduais de saúde da Zona Norte, buscando atendimento adequado para a criança. A menina tem febre e dificuldade para respirar, sintomas que só pioram.
— Já rodei tudo, fui a UPAs e ao Hospital Getúlio Vargas, na Penha. Não sei mais a quem recorrer. No Getúlio Vargas, só consegui atendimento depois de fazer um escândalo na emergência. Mesmo assim, uma enfermeira só olhou e mandou minha filha para casa — contou Raiza, que mora numa comunidade em Cordovil.