Avança no governo proposta que torna mais fácil que planos de saúde “empurrem” para o Sistema Único de Saúde (SUS) o atendimento de procedimentos caros e de alta complexidade. O texto de um projeto de lei que muda o ressarcimento - espécie de reembolso quando um cliente de plano é atendido pela rede pública - já foi preparado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e está em análise pelo Ministério da Saúde.
O documento, obtido pelo Estado, propõe que operadoras façam o pagamento diretamente para instituições públicas que executarem o atendimento. Atualmente, o dinheiro vai para o caixa do Fundo Nacional de Saúde. Pela proposta, para a transação ser feita as operadoras teriam de fazer um contrato diretamente com prestadores de serviços, como hospitais e clínicas públicas.
Além de sugestões sobre o ressarcimento, o documento levanta a discussão sobre dívidas antigas de operadoras. A análise, preparada pela consultoria jurídica, cita a possibilidade de que sejam cobradas dívidas referentes a um prazo máximo de cinco anos. As demais seriam consideradas prescritas.
A proposta da reformulação do ressarcimento, defendida pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros, atende ao pedido de secretários estaduais e municipais, sobretudo de locais mais populosos, como São Paulo. O argumento é que o dinheiro deve ser entregue para a instituição que gastou com o paciente. Do jeito como está atualmente, dizem, não há controle sobre como o reembolso é usado.
O ministro tem dito que considera a mudança justa. Mais do que isso, avalia que a reforma pode ajudar a trazer mais recursos para o SUS e reduzir a briga judicial para ressarcimento. Desde 2000, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) enviou para a inscrição da dívida ativa R$ 623 milhões relativos a cobranças de ressarcimentos não quitados de planos de saúde.
As empresas não reconhecem boa parte dessa dívida. A estimativa é de que, desse total, R$ 500 milhões estejam sendo discutidos na Justiça.
Repercussão. A ANS afirmou não ter sido consultada. Pela proposta, prestadoras de saúde receberiam não apenas o valor do procedimento, mas também os valores de juros e multas, no caso de atraso de pagamentos.
Especialistas do setor consideram a proposta uma ameaça à qualidade de atendimento tanto de usuários de planos de saúde quanto da população em geral. “A mudança vai aumentar o risco de atendimento de dupla porta.
Teriam preferência nos serviços públicos usuários de planos. Eles esperariam menos para serem atendidos do que a população em geral”, avalia o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Mário Scheffer. Isso porque, para o mesmo atendimento, instituições receberiam de planos um pouco mais do que é repassado pelos cofres públicos. Como os valores seriam mais atrativos, completa Scheffer, haveria maior risco de instituições públicas reservarem parte dos leitos apenas para atendimento de planos. “O acesso ao atendimento no SUS, que já é difícil, vai piorar.”
A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lígia Bahia tem avaliação semelhante. “O que deveria ser uma exceção ou opção do paciente, acabaria se tornando regra: o uso da rede pública para usuários de planos.”
Lígia considera também um risco a realização de contratos específicos. “Quem vai controlar isso?” Atualmente, cabe à ANS monitorar se um paciente de plano é atendido no SUS.
Já o diretor executivo da Associação Brasileira de Medicina de Grupo, Antonio Carlos Abbatepaolo, afirma que a mudança é uma boa oportunidade para se discutir o valor do ressarcimento, considerado alto pelo setor.
“Atualmente, pagamos pelo uso da rede pública 50% a mais do que o valor da tabela SUS.” Para ele, o ideal seria que as operadoras fossem avisadas de pacientes internados no SUS. “Teríamos aí a oportunidade de fazer a transferência.”
Abbatepaolo descarta o risco de que empresas se acomodem e passem a contar de forma excessiva com a estrutura do sistema público. “Estaríamos acabando com nosso diferencial.”
Planos acessíveis. Além da mudança nas regras de ressarcimento, o governo estuda outra alteração na saúde suplementar, a criação de planos acessíveis: contratos que ofereceriam uma cobertura menor a preços reduzidos.
“As duas mudanças, associadas, representariam um presente para empresas de planos. Elas ficariam encarregadas de fazer apenas procedimentos considerados vantajosos, como consultas e exames baratos, e o restante mandariam para o SUS”, afirma Scheffer.
Ressarcimento é para garantir atendimento adequado
O ressarcimento de operadoras de saúde ao SUS consta de uma lei de 1998. "Ela não foi feita para angariar recursos, mas justamente para evitar que planos de saúde deixassem de prestar o atendimento devido", afirma Marluce Chrispim, presidente da Associação dos Servidores e Demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar, (Assetans). "Seria uma espécie freio, para obrigar as empresas a ter uma rede de atendimento adequado", concorda o professor da Universidade de São Paulo, Mário Scheffer.
A estratégia, no entanto, resiste em sair do papel. Há consenso de que o recurso é usado de forma limitada. Dados da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que, desde 2000, a agência repassou para o Fundo Nacional de Saúde R$ 1,2 bilhão, um valor que não alcança nem metade do total dos atendimentos passíveis de ressarcimento. Para especialistas que acompanham o setor, essa estimativa está longe de retratar a dívida de fato existente. "Os valores são muito maiores do que esse cálculo anunciado. Até 2014, a agência cobrava apenas internações, deixando de lado outros procedimentos, como hemodiálise e quimioterapia ambulatorial, cujos valores são altíssimos", afirma a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Bahia.
A cobrança do ressarcimento não é imediata. Não basta o usuário ter sido atendido no sistema público de saúde. É preciso que seja comprovado que o procedimento feito, seja cirurgia, seja exame, seja coberto pelo plano. É necessário ainda mostrar que o usuário do plano não estava atravessando o período de carência do contrato ou que o atendimento foi feito na área de abrangência do plano. Nesses casos, a operadora pode recorrer administrativamente à ANS. A análise de especialistas é a de que as operadoras acabam apresentando esse recurso, muitas vezes sem necessidade, justamente para adiar o pagamento da dívida. A estratégia vem sendo bem sucedida.
Dados da ANS mostram que 35% das impugnações apresentadas desde 2000 ainda estão em análise - o equivalente a R$ 1,6 bilhão de atendimentos. Em 2013, o tempo médio que a agência levava para fazer a primeira análise de uma impugnação chegava a quase dois anos - 729 dias. Embora esse período tenha caído, ele ainda é considerado alto: 241 dias. Há ainda possibilidade de recurso da decisão da ANS. Mesmo quando a decisão é tomada, planos acabam procurando a Justiça, questionando a legalidade do ressarcimento.
Além da mudança nas regras de ressarcimento, o governo estuda outra alteração no saúde suplementar, a criação de planos acessíveis: contratos que ofereceriam uma cobertura menor, mas a preços mais reduzidos. A proposta vem sendo duramente criticada por advogados especialistas em direito do consumidor. "As duas mudanças, associadas, representariam um presente para empresas de planos. Elas ficariam encarregadas de fazer apenas procedimentos considerados vantajosos, como consultas e exames baratos e o restante, mandariam para o SUS", afirma Scheffer.