Incapacidade de mobilizar recursos trava setor público
05/08/2016

“Precisamos quebrar dogmas para avançar na direção de uma saúde pública eficiente”, afirma o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da USP. Com experiência na administração pública, como ex-presidente da Anvisa (1999-2003) e ex-secretário municipal da Saúde (2003-2004), Vecina Neto ocupou até março o cargo de diretor-superintendente do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde permaneceu por nove anos.

“No setor público, é muito difícil alcançar resultados pela incapacidade de mobilizar recursos. O ciclo de renovação de materiais nos hospitais públicos exige estoques de 60 dias quando na iniciativa privada se consegue estoques de 20 dias”, compara. Ele não descarta um eventual retorno à administração pública. “Sempre me coloquei à disposição como agente público”. Em entrevista ao Valor, Vecina Neto fala dos desafios a serem vencidos para o Brasil alcançar um “padrão escandinavo” na saúde pública.

Valor: Estudo recente da Organização Mundial de Saúde (OMS), apontou que no Brasil 52,5% dos gastos com saúde são pagos pela iniciativa privada e 47,5% pelo governo, sendo que as despesas totais representam 9,5% do PIB. Na média mundial, os gastos públicos são de 57,6% e 42,35% pagos pelos cidadãos. Por que isso ocorre?
Gonzalo Vecina Neto: Na verdade, gastamos pouco, apesar de o Brasil gastar quase 10% do PIB. Na Inglaterra, o gasto também fica em 10%, mas lá o PIB per capita está acima de US$ 40 mil enquanto aqui não chega a US$ 10 mil. A qualidade do nosso gasto é ruim. Dos 52,5% do setor privado, metade vem dos planos de saúde e o restante paga do próprio bolso. Não temos assistência farmacêutica. A indústria farmacêutica vendeu R$ 40 bilhões em 2015 e deste total o governo respondeu por apenas R$ 5 bilhões, principalmente em itens básicos e de alta complexidade. Na Inglaterra, 80% dos medicamentos são subsidiados e os planos de saúde atingem apenas 6% da população. O terceiro aspecto é a má eficiência dos hospitais públicos. Dos 6,2 mil hospitais existentes, apenas 500 são informatizados, com prontuário eletrônico dos pacientes. Não há nenhum hospital estatal acreditado [certificado por órgãos externos], sendo que os serviços desses hospitais são vendidos para os planos de saúde. São desafios de eficiência e de gestão que precisam ser enfrentados.

Valor: Por que não avançamos em gestão e eficiência?
Vecina Neto: Ainda persiste um discurso no qual apenas a partir da execução de serviços por parte do Estado é possível construir um modelo de igualdade no atendimento. Desde os anos 90, o Estado moderno adquiriu um papel mais regulador. O Estado não precisa necessariamente fazer, mas sim garantir as entregas. Se o Estado é incompetente para mobilizar recursos com certa dinâmica, ele entrega os recursos para a inciativa privada e fiscaliza as entregas. No Brasil, confundimos público com estatal. Nem tudo que é estatal é público e boa parte do que é estatal é privado. Da mesma maneira, nem tudo que é privado é particular, boa parte do que é privado é público. As Santas Casas, quando adequadamente reguladas, são instituições públicas. Podem ser mal geridas, como no caso de São Paulo.

Valor: Como o atual modelo brasileiro atrapalha o aperfeiçoamento da gestão?
Vecina Neto: No setor público, é muito difícil alcançar resultados pela incapacidade de mobilizar recursos. O ciclo de renovação de materiais nos hospitais públicos exige estoques de 60 dias quando na iniciativa privada se consegue estoques de 20 dias. O mesmo ocorre na organização de pessoal. Enquanto a iniciativa privada consegue repor mão de obra em até 40 dias, na administração pública, o mínimo é de seis meses, devido ao cumprimento das normas de licitação e contratação em razão da Lei 8.666. Há ainda o papel ativista dos Tribunais de Contas, criados para fiscalizar em nome do Legislativo, mas que acabam exercendo uma função equivocada. Hoje, para se fazer uma licitação pede-se licença aos Tribunais de Contas, o que gera uma paralisia. Os contratos vencem e os hospitais são obrigados a fazer extensões emergenciais. Caberia aos tribunais analisar a licitação depois de executada.

Valor: Mas, mesmo diante das dificuldades, há ilhas de excelência no país.
Vecina Neto: Concordo. Temos o caso da PPP do Hospital do Subúrbio, em Salvador (BA), onde o governo estadual construiu um hospital e fez uma licitação para entregá-lo a uma entidade privada, que irá administrar e fornecer tecnologia por dez anos. Na cidade de São Paulo, 100% da estratégia do programa Saúde da Família são promovidos pela iniciativa privada, com resultados positivos, do ponto de vista assistencial. Porém, a ação indevida do Ministério Público Federal está desmantelando a Fundação Ary Frauzino, no Rio, responsável pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA).

Valor: E em relação ao financiamento?
Vecina Neto: Temos que repensar o papel do Estado. Discutir novas alternativas para a Previdência. Quem se aposenta aos 50 anos gera um custo para a sociedade. Isso deve ser discutido. Não se pode mexer na previdência rural, que é uma conquista. Precisamos discutir o funcionalismo público, propor opções na qual parte da previdência seja bancada pelo governo e parte pelo contribuinte, que queira ganhar mais na aposentadoria. Discutir as renúncias fiscais, algumas são inexplicáveis e devem ser revistas. Precisamos quebrar dogmas para avançar na direção de uma saúde pública eficiente. O Brasil merece um padrão escandinavo na assistência médica.

Valor: Recentemente, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, propôs a criação de planos de saúde populares como alternativa ao SUS. Isso seria viável?
Vecina Neto: Pode-se discutir a respeito. Hoje, os planos de saúde são ineficientes e mal geridos. O envelhecimento da população gerou mais custos para os planos, que se preocuparam mais em administrar a sinistralidade do que administrar o gerenciamento das empresas. Se não melhorarmos a eficiência, não vai adiantar.

Valor: E uma eventual volta da CPMF?
Vecina Neto: Teve o seu tempo. Foi legítima. Hoje, se for recriada, será para diminuir o déficit primário e não para financiar a saúde. Se voltar, é por que a saúde estará perdendo alguns recursos para financiar o déficit primário.

Fonte: Abramge




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