A pronta resposta do governo interino de Michel Temer à pressão do setor judiciário que resultou, já nos primeiros dias da gestão, em um aumento concedido ao funcionalismo público que custará R$ 67,7 bilhões entre 2016 e 2018 é um dos exemplos do que pode acontecer ao Orçamento nos próximos anos, caso o governo decida desvincular os gastos em saúde e educação e que preocupa o coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, Naercio Menezes Filho.
O lobby de alguns segmentos com maior poder de barganha continuará a "roubar" o espaço no Orçamento destinado a saúde e educação, áreas estrategicamente essenciais para o país e que atendem as famílias mais pobres. "O reajuste do Judiciário já tirou espaço da saúde e educação no Orçamento, e vai tirar sempre. Porque esses segmentos têm um poder de lobby muito forte e muito maior do que os habitantes das pequenas cidades, que têm filho na escola", afirma Menezes Filho. "Quem tem mais poder de lobby? O servidor que está ali do lado da Câmara, no Judiciário, ou uma família pobre do Piauí que tem uma criança na escola?", questiona Menezes.
Além disso, alerta, a razão principal do problema fiscal brasileiro são os gastos da Previdência, e não educação ou saúde, alerta. "Sem reforma da Previdência os gastos vão subir cada vez mais e sufocar todos os outros gastos", afirma Menezes. "Não vai ser possível elevar gastos em saúde e educação acima da inflação porque a Previdência já vai estar subindo acima da inflação", diz.
Conforme informou o Valor no dia do anúncio das medidas, em 24 de maio, o governo precisará mexer nas vinculações das despesas obrigatórias hoje existentes para cumprir o teto para a despesa primária da União. A desvinculação atingiria inclusive as despesas atreladas ao salário mínimo, que passariam a ser corrigidas apenas pela inflação do ano anterior. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Carlos Hamilton, explicou à época que o gasto com saúde e educação poderá crescer acima da inflação, mas somente caso outras áreas gastem abaixo do limite abrindo assim um espaço. "Acho muito arriscado dizer que a democracia vai resolver", afirma o especialista do Insper, com base nas regras conhecidas até agora da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e nos primeiros sinais fiscais do governo Temer. O professor destaca que a vinculação de gastos, embora limite o poder de atuação do gestor público, é necessária à realidade do Brasil e por isso foi estabelecida na Constituição de 1988, que vinculou 18% das receitas do governo federal e 25% das receitas dos Estados e municípios a gastos educacionais. Quando as receitas aumentam, os gastos também podem aumentar.
"Em essência, se todos os políticos fossem maduros, se a população fosse suficientemente esclarecida e cobrasse de todos, e se a própria educação do Brasil fosse mais avançada, não precisaria ter vinculação", afirma. "Os políticos na Constituição de 88 sabiam como o país é. Eles pensaram: vamos amarrar saúde e educação porque senão esses gastos vão diminuir cada vez mais como proporção do PIB. Eles foram inteligentes na época e não mudou muita coisa desde então", afirma Menezes, que se diz, no entanto, favorável ao estabelecimento de um limite nos gastos, mas sem a desvinculação de educação e saúde.
"O Estado cresceu demais, houve muitas políticas equivocadas, a equipe econômica é formada por pessoas competentes, estão indo no caminho certo. Mas há que se levar em conta que educação e saúde são fundamentais, especialmente nos Estados e municípios, e você tem que preservar isso", diz Naercio Menezes Filho.
Gil Castelo Branco, da ONG Contas Abertas, concorda que o governo perdeu a oportunidade de reduzir gastos com funcionários ao aprovar reajuste salarial para o funcionalismo público. "Ao aumentar os gastos com pessoal você está encurralando saúde, educação, previdência. Parece um cabo de guerra: um grupo puxando para um lado, um grupo puxando para o outro", afirma Castelo Branco. Sem que se ataque um destes grandes grupos de despesas, diz Castelo Branco, limitar gastos menos relevantes não terá efeito suficiente para solucionar o problema das contas públicas. "O Brasil é um poço de incoerências. Privilégio é uma vantagem que os outros possuem.
Quando é para mim é direito adquirido. Nessa situação que o Brasil está, de um rombo de R$ 170 bi, eu fico pensando quem vai admitir perder. Se continuar tudo na mesma situação? Daí vamos ficar inviáveis", afirma Castelo Branco.
Menezes Filho, do Insper, destaca que não é favorável à expansão "exagerada" dos gastos em educação, como é, na visão dele, a proposta de elevar os gastos com educação a um percentual de 10% do PIB até 2024, como propõe o Plano Nacional de Educação (PNE). "Mas não dá para ir para o outro extremo. Acho arriscado um país como o Brasil, que tem uma carência muito grande de saúde e educação, você se arriscar a ter uma queda na porcentagem do PIB que é alocada com esses gastos", diz.
Na visão de Menezes, só faz sentido limitar gastos se isso ocorrer junto com uma reforma da Previdência. E mantémse o vínculo para saúde e educação, que são fundamentais, principalmente nos Estados e municípios", diz. A preocupação, diz o professor, é que se os gastos em educação e saúde ficarem a cargo dos mais de 5 mil municípios que existem no Brasil, faltará discernimento para manter os investimentos essenciais. "O pessoal vai começar a cortar e é muito mais difícil cortar outras rubricas que têm interesses mais concretos", diz. Outro risco é o de conflito com as regras do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). "Se você colocar teto para os Estados e municípios vai ter que acabar com o Fundeb, basicamente, que atrela os gastos às receitas dos municípios. Se as receitas dos municípios crescerem mais que a inflação, você vai ter que acabar", afirma.
Menezes destaca ainda que a vinculação de gastos tornou possível avanços importantes para a educação, como a inclusão de alunos na rede de ensino. Em 1985, o país gastava 3% do PIB com educação. Em 1990 foi para 4,7% do PIB, por causa das vinculações constitucionais, afirma o professor titular do Insper. "Com isso as matrículas do ensino médio aumentaram muito. Entre 1992 e 2005, matrículas no ensino médio passou de 4 milhões para 9 milhões", diz.
O país não pode encolher recursos quando ainda tem grandes desafios, como a inclusão de outros milhares de alunos. A taxa de escolarização líquida do ensino médio atualmente, que é o número de matrículas dividido pelo número de pessoas de 15 a 18 anos, está em 60%, segundo Menezes. "Você ainda tem 40% que está fora do ensino médio, esse é o problema. Você precisou aumentar em quase 2 pontos percentuais do PIB para incluir esses jovens. E a préescola também aumentou muito nesse período", afirma. Priscila Cruz, diretora executiva do movimento Todos Pela Educação, ressalta que a decisão de não cortar gastos em educação é essencial mesmo em tempos de crise. "Como o maior erro histórico do Brasil foi o descaso com a educação, neste momento de crise cortar a educação é a sinalização de que a gente não aprendeu com a nossa própria história.”