Mesmo pacientes diagnosticados e tratados precocemente contra o câncer de mama podem ser surpreendidos, anos mais tarde, com a recidiva metastática — quando a doença volta e se espalha para outras partes do corpo. Inclusive, até 30% deles têm micrometástases na matriz óssea (MO) nas três primeiras fases da doença.
Até a edição desta semana da revista Science Translational Medicine, a forma como as células doentes se escondem no interior dos ossos era desconhecida. Mas, agora, pesquisadores dos Estados Unidos afirmam não só ter identificado a molécula que permite o refúgio do tumor nos ossos, como também dizem ter encontrado uma forma de sabotar a tática furtiva de camuflagem que, muitas vezes, deixa a doença um passo a frente do tratamento.
“Identificamos um importante mecanismo que permite que as células do câncer de mama permaneçam ancoradas na matriz óssea. Em ratos, nossas descobertas podem oferecer novas estratégias para intervir, em nível molecular, antes que células dormentes possam tomar posse do organismo e causar uma recaída”, diz Dorothy Sipkins, autora do estudo e pesquisadora da Universidade de Duke (EUA). O passe livre das células tumorais, explica Sipkins, depende da ação da E-selectina, molécula utilizada pelo tumor para viajar até o interior do osso sem ser percebido. Felizmente, os cientistas descobriram que a E-selectina pode ser inibida com um composto que já existe.
Os resultados fornecem nova visão sobre uma das tendências mais devastadores de alguns cânceres, sobretudo o de mama: a capacidade de reaparecer em outros órgãos depois de ter sido aparentemente vencido. Na esteira de estudos anteriores que buscavam maneiras de prevenir a invasão da matriz óssea pelo câncer e expulsar a doença que já se encontrava lá, a equipe liderada de Sipkins rastreou o caminho que células tumorais percorrem no sangue e nos tecidos de camundongos.
Presente em até 75% dos casos de câncer de mama, essas “células operárias” ligam-se a hormônios como estrógeno e progesterona, no caso de mulheres, a fim de utilizá-los como alimento para o crescimento do câncer. Seu objetivo é encontrar, na matriz óssea, vasos sanguíneos que contenham a E-selectina. Essas moléculas são “sequestradas” e utilizadas como passaportes das células viajantes até o tecido esponjoso no interior dos osso, onde a doença pode dormir por anos sem ser notada.
Fuga interrompida
Sipkins imaginou, então, que inibir a produção de E-selectina poderia dificultar a migração do câncer. Com isso, reduziria drasticamente o risco para metástase anos após a remissão. O meio para tanto foi a substância GMI-1271, um inibidor molecular atualmente testado em ensaios clínicos com humanos. Em ratos, o composto impediu com êxito o refúgio das células doentes.
No entanto, uma lacuna permanecia aberta: faltava expulsar para a corrente sanguínea as células que já estavam refugiadas no santuário. Só assim, diz Sipkins, elas estariam novamente vulneráveis aos tratamentos e ao sistema imune do paciente. A cientista também logrou êxito nessa etapa da pesquisa utilizando um medicamento já comercializado, o plerixafor. Usada por doadores de medula óssea, a medicação induz a “expulsão” das células-tronco da medula óssea para a corrente sanguínea, onde podem ser coletadas.
Os pesquisadores esperam que as descobertas, se replicadas em testes adicionais com animais e humanos, possam levar a novas terapias para o tratamento do câncer de mama. “Estamos esperançosos de que a compreensão do ciclo de vida e migração dessas células pelo corpo nos ajude a encontrar maneiras de torná-las mais vulneráveis e tratáveis”, aposta Sipkins. “Nossa esperança é avançar com estudos adicionais em camundongos a fim de entender melhor nossa abordagem antes de passar para estudos em seres humanos.”
Pouco controle sobre a metástase
Oncologista do Centro de Câncer de Brasília (Cettro), João Nunes considera o novo conceito trazido pelos cientistas norte-americanos importante, ainda que ele tenha pouca força, em seu estágio atual, para alterar a prática clínica. “Hoje, o médico não consegue saber se as células migraram para dentro da matriz óssea. Isso significa que não podemos evitar facilmente a metástase, ainda que possamos reduzir os riscos para o desenvolvimento dela”, diz o também professor de cancerologia da Universidade de Brasília (UnB).
O diagnóstico precoce é uma maneira eficiente de prevenir a dispersão do câncer de mama, diz o especialista. “Em países em desenvolvimento, como o Brasil, cerca de 40% das pacientes, mais ou menos depois de cinco anos, apresentam doença recidiva. As que são diagnosticadas rapidamente têm risco de 10%, enquanto as que descobrem o mal em estado avançado têm 60% de chances. A metástase ainda não pode ser curada, mas, certamente, podemos controlá-la na maioria dos casos.”
A oncologista Patrícia Schom, do Centro de Oncologia dos Hospitais do Grupo Santa, em Brasília, acrescenta que, hoje, resta ao médico ser “intenso na intenção terapêutica no momento curativo do tratamento”. “Isso ocorre por meio de tratamento com quimioterapia, hormonoterapia e imunoterapia. As pacientes são acompanhadas e realizam exames contínuos para a detecção precoce da recidiva. Nenhuma outra estratégia é utilizada”.
Nesse cenário, Schom considera empolgante a ideia de poder retirar as células metastatizadas na matriz óssea para torná-las mais vulneráveis aos tratamentos. “Dessa forma, talvez, se consiga reverter o processo de doença incurável. É muito estimulante a ideia de poder controlar ou reverter a razão do processo de disseminação sistêmica da doença. Este estudo permitirá, talvez, a proposta de cura do câncer”.